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Descolonizar Cabo Verde – PARA ALÉM DA REMOÇÃO DAS ESTÁTUAS. É preciso questionar o mapa cognitivo imperial e os legados do colonialismo 

Por Cooperativa Educacional Lilica Boal para a Renascença Africana

No passado dia 11 de agosto de 2021 foi entregue à Assembleia Nacional de Cabo Verde uma petição intitulada: “Remoção de Monumentos pró-escravagistas e coloniais em Cabo Verde”. Elaborado por Gilson Varela Lopes, contando já com cerca de 2000 assinantes, o documento apela à remoção de estátuas de traficantes de pessoas Africanas e de exploradores coloniais como Diogo Gomes, Alexandre Albuquerque, ambas situadas no Plateau, Cidade da Praia e dos bustos dos colonizadores como Serpa Pinto, situados na ilha do Fogo, Sá da Bandeira, Diogo Afonso no Mindelo.

A petição aparece num contexto de luta pela descolonização de narrativas e de espaços. Este tipo de luta tem gerado protestos nas ruas de África de Sul, Reino Unido, Portugal, Brasil, França, Alemanha, Estados Unidos, sobretudo após a execução sumária de George Floyd, nos Estados Unidos, por um polícia branco. As ondas de protestos culminaram no derrubamento e decapitação de algumas estátuas de esclavagistas e colonialistas como Cecil Rhodes, Cristóvão Colombo e outros vultos masculinos brancos associados ao genocídio, às razias imperialistas, ao racismo e outras predações coloniais.

Esta petição já circulava há um bom tempo nas redes sociais, provocando reações tanto contra como a favor. As pessoas que são contra a demolição de estátuas coloniais fundamentam o seu argumento na ideia de se querer fazer o “apagamento da história”, o que consideramos uma resposta despida de crítica histórica. Pois, entendem a interpretação da história como preservação e/ou mumificação em vez de contestação crítica, dado que a narrativa histórica colonial e imperial sempre foi usada publicamente para despersonalizar a história das populações subjugadas e renovar o dia-a-dia das relações de poder nas colónias. As estátuas erguidas são grandes manifestações de poder, fazem parte de um projeto de dominação e narram a história dos colonizadores, nunca dos colonizados.

A tese de se “querer apagar a história” é usada de forma arbitrária e unilateral, silenciando o facto de que a estátua de Diogo Gomes, que a petição propõe remover, foi derrubada com o advento da independência. Vale a pena recordar que é, também, no contexto da chamada “abertura democrática” que se removiam os nomes e símbolos ligados à luta pela independência. O caso mais paradigmático é o do bairro Kwame Nkrumah, líder anticolonial, pan-africanista e primeiro presidente da República do Gana, que hoje tem o nome do Presidente da ditadura fascista portuguesa, Craveiro Lopes.

Congratulamo-nos e felicitamos a iniciativa, que vem dar seguimento a um debate que já acontece há anos em Cabo Verde e nas suas diásporas, embora silenciada pela imprensa mainstream cabo-verdiana, subvalorizada pela academia cabo-verdiana, ignorada pelos decisores públicos da política educativa e cultural.

Nós os subscritores desta carta entendemos que, embora a petição estremeça o edifício da dominação ao refutar os mitos criados pelo imperialismo, será preciso ir muito mais além disso. Frantz Fanon, um dos principais teóricos anticoloniais, escreveu que “o colonialismo não se contenta em apertar nas suas redes o povo, em esvaziar o cérebro colonizado de qualquer forma e conteúdo. Por uma espécie de perversão da lógica, orienta-se para o passado do povo oprimido, distorce-o, desfigura-o, aniquila-o”.

Questionar o mapa cognitivo imperial e os legados do colonialismo implica tocar fundamentalmente na educação. Por isso, entendemos que é preciso ir mais longe: reformar e atualizar os conteúdos históricos dos currículos, dos programas, dos manuais escolares e outros recursos educativos e pedagógicos usados no ensino em Cabo Verde. O ensino e, sobretudo o ensino da História e da Cultura Cabo-verdianas, tem sido feito com base numa narrativa de glorificação colonial e de romantização dos vários enfrentamentos irreconciliáveis e contraditórios entre si que deram origem à sociedade cabo-verdiana (a escravidão, o racismo, o tráfico, as fomes, as repressões, a violação de mulheres negras por colonizadores brancos que deram origem a nativas/os mestiças/os, etc.). O currículo e vários conteúdos adotados no ensino da História e da Cultura Cabo-verdianas têm sido marcados por uma visão luso-tropicalista, influenciando diretamente a interpretação e a cultura histórica das nossas e dos nossos estudantes.

Ainda, é importante que seja dito que esse ensino “latificado”, que atribui o monopólio de pensamento ao homem branco ocidental, participa de forma substantiva na reprodução de hierarquias das humanidades, inclusive hierarquias linguísticas, inventadas desde a chegada das velhas caravelas, canhões, espadas.

Não é por acidente que a suposta morabeza cabo-verdiana é bastante seletiva e hierarquizante. As imigrantes e os imigrantes do continente africano nunca conheceram essa tal “morabeza”, pelo contrário têm ouvido tantas aberrações que fazem lembrar o que as cabo-verdianas e os cabo-verdianos escutam dos racistas em Lisboa e noutras tantas capitais europeias.

Também entendemos que a descolonização de narrativas e de espaços não deve se resumir a um mero exercício intelectual ou a um jogo cosmético de terminologias e conteúdos, mas deve ter um caráter de transformação social e material. Em 1972, Amílcar Cabral, em conversa com ativistas dos Estados Unidos tocou nesse ponto dizendo algo como isto: “se um ladrão assaltar a minha casa e eu tiver uma arma, não vou disparar contra a sua sombra (…) Temos de combater a realidade material que produz a sombra”. Nesse sentido, a possível reforma nos conteúdos e programas escolares tem de andar de par com políticas concretas que facilitem o acesso gratuito dos jovens ao ensino superior em Cabo Verde.

Por fim, apelamos à participação de todas e todos neste momento histórico, principalmente aos estudantes e professoras/professores.

A Luta Continua

OS SUBSCRITORES    

1             ABEL DJASSI AMADO

2             ALAN ALAN

3             ALEXANDRA FERREIRA

4             ALEXSSANDRO ROBALO

5             APOLO DE CARVALHO

6             ARLINDO STONI

7             ASTRID UMARU

8             BRUNO MONTEIRO

9             CHULLAGE

10           CLÁUDIA SANTOS

11           DJUNTAMOH AFRIKANU

12           EDYOUNG LENNON

13           FLÁVIO ALMADA (LBC)

14           GILSON LOPES

15           ILDA VAZ

16           IOLANDA ÉVORA

17           IVA CABRAL

18           JAKILSON PEREIRA

19           JO MUHAMMAD

20           KWAME GAMAL MONTEIRO

21           LUMUMBA SHABAKA

22           LUÍS BAESSA

23           LUÍS FONSECA

24           MAX RUBEN RAMOS

25           NILTON MASCARENHAS

26           PAULO UMARU

27           REDY WILSON LIMA

28           RUI ESTRELA

29           SUZANO COSTA

30           VICTOR BARROS

31           YURI QUEITA

 
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Publicado por em Setembro 9, 2021 em Plataforma Gueto

 

Resenha do Livro: “Colonialismo Digital: Por uma crítica Hacker-Fanoniana”(2022) de Deivison Faustino e Walter Lippold.

Flávio Almada “Lbc Soldjah”.


A obra Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana” (2022) de Deivison Faustino e Walter Lippold, surge num contexto em que se debate o papel das tecnologias informacionais na sociedade atual. É certo que a introdução da tecnologia digital acelerou e alterou de forma significativa o ritmo social da nossa vida quotidiana, especialmente no que toca a nossa perceção de tempo e espaço. O contexto pandémico diante do qual nos situamos veio intensificá-la, de modo grosseiro, conduzindo-nos a submergirmo-nos no ciberespaço como jamais foi visto, onde duas grandes indústrias se fortaleceram: biotecnologia farmacêutica e as big techs. A obra defende que a época atual de desenvolvimento das forças produtivas inaugura uma sofisticação de tecnologias necropolíticas de poder, que incide tanto sobre os territórios guetizados do mundo quanto sobre a humanidade como um todo. Em outros termos, o presente avanço tecnológico não suspendeu a ampliação das desigualdades (sociais e raciais), a vampirização dos recursos naturais e energéticos, o domínio de terror e tortura, genocídio e as investidas imperialistas ao Sul Global.  Nesse sentido, a propagada promessa de utopia digital e/ou internet salvadora não se concretizou, e ao contrário o nosso tempo histórico é marcado por uma distopia digital onde os corpos são reduzidos à mercadoria. Também destacam a forma como somos policiados e inundados pela epidemia de fake news que trabalham em prol do tecnofascismo, bem como a observância do consumo da energia vital das pessoas que tem causado um cansaço vertiginoso e permanente. Propondo então  analisar os impactos económicos, políticos, sociais e culturais das tecnologias digitais na sociedade atual, Faustino e Lippold resgatam o pensamento de Frantz Fanon (1925-1961) – psiquiatra, filósofo  revolucionário e principal teórico da revolução argelina –  para presentear-nos com uma crítica séria, rigorosa e profunda, a partir de uma perspetiva que cruza  o marxismo com o antirracismo radical, dialogando  com o pensamento de autores como Karl Marx, Vladimir Lenine, Rosa Luxemburgo, Kwame Nkrumah, Achille Mbembe, Hortense Spillers, Safiya Umoja Noble, etc. Defendem que tanto o método dialético como a crítica da economia política continuam a ser fundamentais para compreender o capitalismo no século XXI. Assim como os acúmulos teóricos sobre a ontologia do ser social, o caráter fundante do trabalho, as classes sociais, o imperialismo e o neocolonialismo para perceber as condições históricas que abriram caminho para a produção das novas tecnologias, e a partir de quê esse modo de produção se estruturou. Ainda, os autores defendem que as relações capitalistas de produção que geraram as condições para as revoluções tecnológicas do século XX e XXI, só serão compreendidas se for levado em conta o papel que o colonialismo e o racismo desempenharam na criação de condições vitais para a primeira e segunda revoluções tecnológicas[1].

Faustino e Lippold começam a obra a discordar de algumas abordagens teóricas sobre o fenómeno. A primeira consiste na falsa ideia de que a ciência e a tecnologia são neutras, como se estivessem fora da sociedade em que foram geradas. A segunda é a crença numa suposta neutralidade e linearidade do desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo. Esse fetiche da tecnologia, explicam os autores, toma os avanços tecnológicos e científicos como sempre bons e melhores sem jamais discutir as suas contradições. Recordam-nos que a estrutura atual da nossa internet foi produzida no contexto de uma disputa militar em plena guerra fria, protagonizada pela ARPANET (um projeto de pesquisa avançada de comunicação militar) e na rede militar da Rand Corporation, contando com o apoio da Rede Cyclades da França e NPL inglesa. A internet, assim, foi um projeto de desenvolvimento de tecnologia militar e das universidades, financiado pelo orçamento do ministério de defesa dos Estados Unidos em pleno contexto de  cristalização da  “ideologia californiana”, sendo esta última uma defensora e praticante  do “culto do mercado livre” e o anti estatismo (opositores dos serviços universais de saúde, ensino, habitação, etc.). A terceira é a dissimulada oposição entre mundo virtual e mundo real, a ideia de um suposto tempo real e imaterialidade dos dados. O virtual, defende os autores, além de que não deve ser confundido com o digital, é um dado objetivo da realidade. E o suposto tempo real é uma ilusão que camufla a materialidade dos dados porque estes precisam de meios físicos para que possam circular. O “processamento de dados, ainda que em forma de códigos, depende de sistemas binários e dispositivos em estado sólido (circuitos integrados = chips) que trabalham por ações eletromagnéticas[2], apesar de aparentemente intangível, não pode contornar as leis da física. São ainda produzidos por pessoas em determinado espaço, a partir de uma certa quantidade de energia e recursos materiais, transmitidos sob meios materiais específicos para serem posteriormente recebidos e armazenados em algum lugar físico[3]. Esse “admirável mundo novo” não existe de acordo com os autores, uma vez que é um “novo que não rompe com o velho, mas o atualiza[4]”. Isto é, o desenvolvimento tecnológico permanece sendo   capitalista. Então, se a sociedade atual continua a estar dividida em classes socias, com interesses antagónicos, a pergunta a ser feita é a seguinte: afinal quem é que domina quem?

Nessa tarefa os autores investigam as bases históricas que concorreram simultaneamente para a emergência do capitalismo, levando em conta as “determinações reflexivas entre capitalismo, colonialismo e racismo[5]”. Segundo os autores “sem a expropriação das terras indígenas e a escravidão colonial as relações capitalistas de produção nos países clássicos não teriam desenvolvido a ponto de concorrerem vitoriosamente com os antigos modos de produção, e com isso criarem o caminho para a consolidação das noções de democracia, liberdade e igual dignidade como pressupostos humanos[6]”. Melhor dizendo, o adorado liberalismo conviveu de bom grado com a escravidão de pessoas africanas, com a coisificação colonial dos povos colonizados. E esse contratualismo liberal, no qual os escravizados africanos e indígenas não foram incluídos, mais a desumanização dos povos colonizados/racializados foi condição sine qua non para a consolidação da sociedade burguesa e os seus pressupostos jurídicos “universais[7]”. No final do século XIX, com a chegada do imperialismo se intensifica a divisão internacional do trabalho e a redução dos países colonizados ou recém-independentes a meros espaços de extração de matérias-primas em prol das potências colonizadoras. Nesse estágio o capitalismo se transforma em imperialismo, sendo pautado pela dominação dos monopólios e do capital financeiro. Verifica-se a “ partilha do mundo entre trustes internacionais, onde se pôs em marcha a partilha de todo o território do globo entre as maiores potências capitalistas[8]”. Essa cultura de roubalheira e violência coloniais, melhor dizendo, de produção de “mundos de morte”, não se restringiu às fases anteriores.  Longe disso, foi sendo atualizado nos estágios seguintes, seguindo os mesmos métodos de violência absoluta nos territórios periféricos do sistema capitalista, tornando assim possível a democracia e o direito nos centros capitalistas. De fato, a burguesia dos centros capitalistas para suavizar as contradições inerentes ao sistema capitalista nos centros europeus, cria no seu seio uma “aristocracia proletária”.  Explicam os autores que “nos centros capitalistas, as reivindicações operárias por melhores condições de vida – mas também as altas taxas de lucro durante o fordismo – só puderam ser atendidas através de pactos sociais, como welfare State, porque havia a possibilidade de transferir efectivametne essas condições precarizadas e a violência que lhe é inerente para as periferias capitalistas – colonizadas ou semicolonizadas[9]”. Nesse contexto de expansão do capital, também se constata a emergência do chamado “racismo científico”, acompanhado da sua inerente lógica de darwinismo social, eugenia, a fim de evitar a universalização do direito burguês, os quais pavimentaram o caminho para o nazismo. Vale a pena não esquecer, como fizeram os autores, que a violência colonial é o prefácio do nazismo.

No século XX a onda independentista fez tremer as placas tectónicas da estrutura colonial, contudo, “mesmo após os processos de independência na África, na Ásia e em alguns lugares da América ao longo do século XX, ainda subsistiram os fenómenos de dominação colonial[10]”. Kwame Nkrumah designou este processo de neocolonialismo. Segundo este pensador ganês, figura incontornável do pan-africanismo, as burguesias dos países que foram colonizados mantiveram-se subjugadas à burguesia das suas ex-metrópoles, o que demonstra a existência de uma “independência de bandeira”.  De outra maneira, o neocolonialismo em África atua de forma encoberta, manobrando políticos e governos, “liberto do estigma da dominação colonial. Cria Estados-clientes, que são independentes no papel, mas que na realidade continuam a ser dominados pela própria potência colonial que supostamente lhes deu a independência[11]. Contudo, existem mudanças significativas entre a época em que o Nkrumah teorizou o neocolonialismo e o contexto atual. Para capturar essas transformações estruturais os autores recorreram ao conceito de “neocolonialismo tardio”, elaborado por Paris Yeros e Praven Jha (2020). Para estes últimos “a diferença do período atual com aquele do pós-guerra, estudado por Nkrumah, é que não há mais territórios ainda inalcançados para transferir as violentas contradições produzidas nos e em função dos grandes centros capitalistas. Para além disso, as transições culturais e sociais advindas deste novo contexto redefiniram não apenas os fluxos de capitais – e informações, cada vez mais mercantilizadas – mas também de pessoas e culturas, sem, contudo, dissolver as antigas barreiras nacionais, raciais e religiosas[12].  Por esse ângulo a globalização é vista como um eufemismo que dissimula o monstruoso continuum imperialista, através da utilização de ciberarmas, espionagem militar, diplomática e industrial, estrangulação económica, a privatização da logística militar e até contratação de mercenários para “guerras híbridas” e distribuição geográfica de bases militares dos Estados Unidos[13]. Nessa conjuntura, defendem os autores que o “racismo e xenofobia se tornam mais importantes do que jamais foram, atuando como critério biopolítico de diferenciação de quem é e não é nacional, quem é humano e quem pode ser morto sem que haja nenhuma comoção[14] .  Todavia, os autores afirmam ter deparado com um silêncio, ensurdecedor, sobre o racismo, mesmo na literatura que aborda o colonialismo digital ou de data. Essa espécie de identitarismo branco, segundo os autores, se vangloria de representar um pensamento crítico radical, mas se recusa a enfrentar as dimensões raciais da exploração de classe[15]. Por esse ângulo, defendem os autores, que a determinante económica não impede que as tecnologias incorporem as contradições sociais de uma dada época: racismo, machismo, homofobia, racismo religioso, entre outros[16]. O racismo no contexto atual, explicam os autores, tornou-se um “regulador de distribuição da morte” no movimento de transformação do processo produtivo, na redefinição de relações sociais, no realinhamento da arena da luta de classes, a nível mundial, e no aperfeiçoamento de novas formas de expropriação que foram elevadas a níveis inéditos. Citam exemplos de casos dos aplicativos de reconhecimento facial, que ao serem elaborados a partir de uma estética de branco ocidental, não reconheceram os traços negros com precisão. Parece ainda ter ficado evidente o abismo entre os estudantes brancos e negros no que concerne ao acesso aos meios de ensino à distância, no contexto do covid-19, acrescentam os autores[17].  Por efeito dessa observação, cunham o conceito de racialização digital ou racialização codificada, com finalidade de “dar conta do contexto de explicitação material do desenho de algoritmos de forma a evidenciar a seletividade racial dos cargos técnicos em empresas de programação, distribuição social desigual de prestígio entre produtores de conteúdo digitais na internet e codificação naturalizada dos discursos e estética racistas nas mídias sociais e bancos de imagens digitais[18]”. Os autores recordam-nos ainda que “o Twitter já foi acusado de favorecer algoritmos racistas e de extrema-direita[19]”. Pelo exposto, o “mundo novo”,  que não rompeu com o velho, continua a ser compartimentado, dividido entre a zona do ser e do não-ser, ordenado pela violência em estado bruto, onde os corpos são reduzidos às mercadorias, despersonalizados em massa, produziu condições para o aparecimento do colonialismo digital[20].

O colonialismo digital não é uma metáfora e/ou uma figura da linguagem, explicam os autores. Ao contrário, constitui uma “expressão objetiva (e subjectiva) da apropriação privada de tempos de trabalho de seres humanos, afastados dos meios de produção e forçados a sobreviverem mediante a alienação da sua força de trabalho[21], configurando assim a expressão tecnológica informacional do neocolonialismo tardio[22].  Da mesma maneira que no imperialismo a “partilha do mundo se efetuou entre duas ou três potênciais rapaces, armadas até aos dentes as quais dominaram o mundo e arrastaram todo o planeta para a sua guerra pela partilha do seu saque[23], o colonialismo digital também se baseia numa partilha territorial do globo terrestre, entre os grandes monopólios da indústria de informação, num contexto em que o valor comercial dos “dados” suplantam os do petróleo. Em função disso, através do “uso da tecnologia digital para a dominação política, económica e social de outra nação e território[24]”. Além disso, continuam os autores, é “possível comparar a distribuição mundial de fibra ótica com a expansão imperialista das linhas rodoviárias no século XIX. Nos dois casos a exportação de capitais que viabiliza tal monta, só foi possível mediante a partilha colonial do mundo, de forma a inserir de maneira subordinada os territórios colonizados ou semi-independentes na economia mundial[25]”. Hoje as Big Techs dispõem de meios suficientemente capazes para influenciar, senão determinar, eventos políticos, até de eleger governos, lembrando-nos  dos escândalos da empresa privada Cambridge Analítica aquando da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos;  o vazamento de  dados de 30 milhões de usuários prontamente usados pelas ovelhas do Steve Bannon e Trump no Brasil, que culminou na eleição de Jair Bolsonaro[26]; a privatização da guerra sobretudo durante a invasão do Iraque, a destruição da Líbia, a guerra da Síria;    a tomada de partida da Microsoft, Tesla, Facebook na atual guerra da Ucrânia, ao anunciar sanções contra a Rússia[27];  o uso do software pegasu da empresa NOS israelita para tracar jornalistas e dissidentes políticos[28];  as tecnologias como a Cyclone Hx9 foram usadas pelos Estados Unidos para espionar governos, como o alemão e vários outros governantes[29] ; e/ou como a NATO tem usado a tática de guerra cognitiva, empreendendo  exercícios de guerra tomando como alvos o Irão, a Rússia e a China[30] e os assassinatos, feitos à distância, pelos drones. Importa recordar, como fazem os autores, que o bilionário excêntrico Elon Musk, o qual recentemente comprou a plataforma de comunicação de interação Twiter, acessada diariamente por 200 milhões de pessoas, se vangloria de ter financiado o golpe de estado contra o governo de Evo Morales na Bolívia, um país produtor de matérias primais úteis às suas empresas (Tesla, Space X)[31]. No que toca ao continente africano, os autores destacam a forma como o imperialismo tem incentivado a guerra civil no Congo, na corrida pela extração de minério como “o coltan, formado por columbita – de onde se extrai o nióbio – e tantalita, pois são base para condensadores eletrónicos e supercondutores[32]”, fomentando conflitos étnicos entre BaHutus e BaTutsi que no século passado resultou em genocídio no Ruanda. Além de uma longa lista de empresas rapaces de minérios (inglesas, francesas, cazaques, paquistanesas, chinesas, estadunidenses entre outros), os autores apontam que o controle da infraestrutura digital africana é efetivado por monopólios imperialistas como a Meta (antigo Facebook) e Google[33]”, o que leva a perguntar em que pé está a soberania digital africana.

A outra face predadora do colonialismo digital, consiste na colonização dos dados que reduz o chamado Sul Global a mero território de mineração extractivista de dados informacionais[34], pois não ocorre a transferência de know how e tecnologias digitais para países que integram o Sul Global. Nesse processo de atualização do imperialismo, o subimperialismo e o neocolonialismo, o colonialismo de dados integra de forma avassaladora, cada vez mais, a vida humana, o ócio, a criatividade, a cognição e os processos produtivos às lógicas extractivistas, automatizadas e inúmeras formas de policiamento com vistas à ampliação da acumulação de capitais[35].  Por conseguinte, “o colonialismo digital é um fenómeno pautado pela dominação e extração de mais-valia absoluta e relativa, de riquezas minerais, matérias-primas para os semicondutores, essenciais para o fabrico dos equipamentos digitais e grande “mina do Big-data, extração de dados para o processamento[36]”.  E quem tem sido valorizado são “as corporações do vale do Silício, que juntas valem mais de 10 trilhões de dólares (…) e as chamadas Big Five (Apple, Amazon, Alphabet, Microsoft e Facebook) somaram quase 900 milhões em receita em 2019[37]” através de estratégias de mineração de dados” que são comercializados pelas empresas como a UBER. A uberização do trabalho, defendem os autores, foi alcançada graças ao afrouxamento das legislações laborais em várias partes do mundo[38].  No entanto, os autores constatam que há um debate, sobretudo no Japão, com objetivo de delinear estratégias para “corrigir” os excessos da exploração com vista ao alcance de uma espécie de “estado de bem-estar digital. Contudo, defendem que esse debate não prioriza a vida e o planeta.  De maneira oposta o seu objectivo é “ampliar ainda mais a sincronização dos tempos de trabalho de modo a evitar o colapso absoluto das condições de reprodução do capital, no interior de uma lógica de produção autofágica[39]”. Além do mais, esse suposto estado de bem-estar digital só é possível se não for aplicado noutras partes do mundo, assim como foi com o welfare state (estado de bem-estar), surgido pós segunda guerra mundial, que só se aguentou sobre as colonias africanas e asiáticas[40].

Chegando no final do texto, Faustino e Lippold nos dizem que, apesar desse cenário, existem soluções alternativas, embora ainda não sejam ideais.  Longe da discussão moralista (boa e má tecnologia), Faustino e Lippold nos lembra de como Frantz Fanon lidou com os conhecimentos e tecnologias impostos, violentamente, pelo colonizador sobre os colonizados. Em primeiro lugar, de acordo com os autores, Fanon recusou ter uma visão neutralista da tecnologia. Segundo analisou, de modo visionário, o uso da tecnologia de comunicação pelos colonialistas franceses demonstrou como os revolucionários calibanizaram os aparatos e redes eletrónicas de comunicação durante a revolução argelina[41]. A calibanização dessas tecnologias pelos revolucionários argelinos levou a que o colonizador francês mudasse a sua tática: proibindo a venda de pilhas para as rádios e/ou usando tecnologias para sabotar a radiofrequência do movimento revolucionário argelino, o que Fanon cunhou de “batalha de ondas”. Posto isso, continuam os autores, a descolonização das tecnologias tem de passar pela premissa de que o problema não são as tecnologias em si, mas sim os sentidos pelos quais são projetados, e sobretudo os usos que lhe atribuirmos. Para finalizar a obra, lembram-nos que “se há uma certa colonização da rebeldia e desejo de transformação por parte dos grandes centros de poder através do direcionamento do nosso engajamento para a ampliação dos seus lucros, cabe não perder de vista o debate sobre estratégias e meios alternativos de comunicação”. Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana” (2022) de Deivison Faustino e Walter Lippold, é uma obra de leitura obrigatória para todos, sobretudo para as pessoas que se interessam pela transformação radical do mundo.

Flávio Almada “Lbc Soldjah”

[1] Idem, p.54-55

[2] Idem, p.36

[3] Idem, p.152

[4] Idem, p. 22

[5] Faustino, 2021

[6] Idem, p.58

[7] Idem, p.60

[8] Lenine, 1987, p.88. citado na obra)

[9] Idem, p.65

[10] Idem, p.68

[11] Nkrumah, Kwame, 1977, p.198

[12] Idem, p.72

[13] Idem, p.73

[14] Ibidem

[15] Idem, p.192-93

[16] Idem, p.197

[17]Idem, p. 198-199

[18] Idem, p.198

[19] Idem, p.234

[20] Idem, p.75

[21] Idem, p.20.

[22] Idem, p.75

[23] Lenine, 1977, p. 582

[24] Idem, p. 96

[25] Idem, p.114

[26] Idem, p.190

[27] Idem, p.120

[28] Idem, p.189

[29] Idem, p.187

[30] Idem, p.191

[31] Idem, p.234

[32] Idem, p.154

[33] Idem, p.156

[34] Idem, p.22

[35] Ibidem

[36] Idem, 176

[37] Idem, p.98

[38] Idem, p.176

[39] Idem, p.21

[40] Ibidem

[41] Idem, p.218-221

 
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Publicado por em Setembro 29, 2022 em Plataforma Gueto

 

A Direita Radical em Portugal e as Presidenciais de 2021. Qual significado para a Comunidade Negra?

A Direita Radical em Portugal

   No período pós 25 de abril de 1974, durante um tempo considerável a direita radical portuguesa consistiu em grupelhos que viram frustradas as suas tentativas de criação de partidos políticos que reunissem amplo apoio popular, acantonando-se às ações de grupos violentos, alguns dos quais levaram a cabo vários atentados terroristas contra instalações de partidos de esquerda, assassinatos de militantes de partidos de esquerda e ataques racistas visando negros e ciganos. Dentre esses ataques racistas, destacamos o assassinato do Alcindo Monteiro em 1995 por um bando de terroristas da extrema-direita, sendo que alguns deles integram hoje o partido “Chega”, como é o caso do nazista Mario Machado, e a constituição de manifestações e milícias populares contra a presença da população cigana em Vila Verde e Francelos, ainda durante os anos noventa e campanhas de intimidação de populações não-brancas. Contudo, se   a expressão dessa direita extrema tem sido marginal em termos partidários e de expressão nas urnas no âmbito da chamada democracia representativa vigente, excetuando o CDS, é de assinalar uma presença constante ao longo dos anos de uma ideologia marcada pelo conservadorismo, nacionalismo, ultraliberalismo, fascismo, populismo e ódio racial, que se acompanha de uma tentativa crescente de normalizar as ideias e práticas da direita na cena política portuguesa e na sociedade civil.

   A manifestação mais recente do esforço continuado de integração institucional da extrema-direita por via partidária, é o surgimento do partido “Chega” em 2019, liderado por André Ventura. Esse partido, à semelhança do partido francês Front National, hoje Rassemblement National, no qual ele se inspira, assenta numa maquiagem do neo-nazismo e neo-fascismo através de um populismo exacerbado e formatação de discurso, que ao mascarar as suas verdadeiras intenções, procura ter maior aceitação popular e se normalizar dentro do quadro democrático. Publicamente é frequente ouvir os líderes da extrema-direita tentando demarcar-se dos neonazis mais assumidos e violentos, mas na verdade acaba-se por verificar que estes são os seus militantes de base. 

   A emergência do Chega em Portugal acontece dentro de um contexto de crises cíclicas do sistema de acumulação de lucros e na sequência de uma ascensão a nível global das forças nacionalistas, racistas, conservadoras e populistas de direita um pouco por todo o globo, ilustrada pelo fascismo de Narendra Modi, na Índia,  a eleição de Bolsonaro no Brasil, Trump nos EUA, e também pela influência crescente da extrema-direita em países europeus como a Polônia, Hungria, Itália, Reino Unido, Bélgica e França. Essa projeção internacional da extrema-direita tem várias explicações. Vamos apontar algumas que consideramos fundamentais, sem querermos ser exaustivos.

   1-Trata-se de uma reação ao acontecimento geopolítico mais significativo da atualidade: a Europa e o Ocidente em geral e os EUA em particular, já não são o centro do mundo. (Mbembe, 2013; Beeson, 2020; Kempf,2013). Estamos numa fase de transição em que face a uma configuração geopolítica multipolar (em vez de bipolar durante a Guerra Fria e Unipolar logo a seguir à queda do muro de Berlim, em que os EUA predominaram enquanto superpotência mundial isolada) a hegemonia ocidental está em franco declínio. O contraponto disso é a ascensão da China assim como de outros países ditos emergentes como a Índia, a África do sul etc. Esse fato gera uma dor e desconforto enorme não só na oligarquia capitalista e neoliberal do Ocidente, mas também em outras franjas da sociedade civil europeia. O resultado é uma tentativa desesperada de travar ou inverter a marcha da história da humanidade, através da negação das novas dinâmicas globais e de um apego a ideais e práticas retrógradas, como é ilustrado pelo programa político de partidos como o Chega. 

   Uma outra dimensão é a ideia perversa de “colonização inversa, ou seja, a noção segundo a qual os chamados migrantes económicos (refugiados) que se deslocam para a Europa à procura de melhores condições de vida – uma vez que os seus países foram destruídos pelo intervencionismo militar ocidental que destruiu vários países do sul global sob o pretexto de “guerra ao terror” – constituem uma ameaça de invasão e colonização invertida para a Europa”. Nesse sentido, a Europa repete-se incessantemente no seu mito de “pureza branca” e diaboliza, patologiza a migração, os refugiados, militariza as fronteiras e implementa tecnologias de controlo e vigilância sobre aqueles e aquelas através dos quais, a diferença cultural é considerada problemática. Em suma, o mundo ocidental no seu todo vive o “desejo de apartheid” (Mbembe, 2017).

2- O segundo fator que deve ser apontado é a capitulação a nível global da Esquerda, cujo grau varia de país para país, mas que sem dúvida tem afetado quase todos os países em que essa corrente se afirmou no passado. Por esquerda entenda-se movimentos políticos que se declaram como anticapitalistas e anti-imperialistas, podendo ir de moderado a mais radical. A maior ilustração da capitulação da Esquerda a nível global, é o desaparecimento do movimento internacional antiguerra ou pacifista, que ainda no início dos anos 2000 se fazia fortemente sentir nas ruas e no espaço político internacional. Depois dos protestos contra a invasão pelos EUA do Iraque em que milhões de pessoas se manifestaram nas ruas das principais cidades ocidentais, esse movimento desapareceu completamente (Bouamama & Collon, 2019). Nas intervenções criminosas seguintes: Líbia, Síria, Mali, Yemen etc. uma boa parte ou a maior parte da esquerda já se tinha vendido ao neoliberalismo e caído no discurso da legitimidade da ingerência, sob pretexto de combater ditadores ou o terrorismo “islâmico”, mesmo que violando os princípios básicos do direito internacional. De sublinhar também a atitude negligente da esquerda a nível internacional relativamente à causa palestiniana. Um dos países em que essa patologia provocou maior estrago é a França, país no qual se pode afirmar que a esquerda está morta. O partido comunista (PCF) já não tem praticamente nenhuma expressão eleitoral. O partido socialista francês (PS) está tão moribundo que está a ponderar mudar de nome.  Quanto à responsabilidade no apoio às guerras imperialistas e genocidas mais recentes no Médio Oriente, na África e na ingerência desavergonhada na América Latina, ninguém escapa, indo dos socialistas mais moderados aos anarquistas, estes supostamente à esquerda da Esquerda, todos se coligaram para apoiar as forças imperialistas. Essa irresponsabilidade da Esquerda tradicional, deixa obviamente o terreno livre para a prosperidade da Extrema direita e da direita travestida em centro ou outra qualquer modalidade que os chauvinistas acharem conveniente. Somado a isto tudo, a esquerda no seu conforto permitiu que a extrema-direita ocupasse o campo de “antissistema”.

As Presidenciais de 2021, qual significado para a Comunidade Negra em Portugal?

   Essas eleições de 2021, do ponto de vista dos negros e negras residentes em Portugal, são simbólicas, não por representarem a possibilidade de uma mudança de fundo na nossa situação, mas o fato de um candidato da Extrema-direita ter ficado em terceiro lugar, diz muito da situação política atual no país e do pensamento de uma parte considerável da sociedade portuguesa. O candidato André Ventura representa aquilo que muitos portugueses brancos pensam em termos de racismo e de obscurantismo no que se refere a valores defendidos pelo salazarismo, com o apoio da Igreja Católica, mas não ousam dizer ou praticar. O avanço da extrema-direita em Portugal deve ser tido a sério, pois se a comunidade negra já é fortemente penalizada com governos à esquerda dessa direita agora em ascensão, a normalização da extrema-direita tanto na cena política como na sociedade civil apenas pode piorar a nossa condição. No entanto, é importante que fique aqui bem escuro que a mudança de que precisamos não depende de eleições nem da política dos partidos, dos políticos ou dos presidentes. Muitos já vieram e foram e os nossos problemas essenciais ainda estão aqui. Até agora nenhum dos presidentes que estiveram no poder depois do 25 de Abril, foi capaz de fazer com que os negros deixem de ser o grupo social que faz o trabalho mais desagradável em Portugal. O mercado de trabalho continua étnica e racialmente segmentado com os negros na base da pirâmide, embora exista alguma mobilidade para as novas gerações. As nossas mães, irmãs, tias etc, continuam a limpar escadas, centros comerciais, a dar duro no setor da restauração e nas fábricas, a cuidar de idosos e a fazer trabalhos domésticos sem serem bem remuneradas por isso, sem serem socialmente reconhecidas, e num vazio sindical completo.

   Os negros continuam a ser descritos nos manuais escolares portugueses como selvagens e primitivos que precisaram dos portugueses para poderem ser civilizados e começarem a existir enquanto seres humanos. A narrativa mítica, falsa, mentirosa dos colonizadores enquanto heróis civilizadores, protagonistas das “Descobertas” continua a ser ensinada nas escolas, os monumentos alusivos a esses “feitos” estão mais do que de pé em Belém e vários pontos do país. Há anos que reclamamos uma reforma desses manuais escolares, até agora não vimos nenhum presidente para isso. Muito pelo contrário, Marcelo Rebelo de Sousa deslocou-se até a Ilha de Goré onde os nossos antepassados eram mantidos no mais desumano cativeiro, e do seu discurso não saiu o mínimo de reconhecimento pelo mal que foi feito pelos portugueses, quanto mais um pedido de desculpa. Muito menos a consideração de uma possível Reparação a ser feita àqueles e aquelas que ainda vivem na pele as sequelas deixadas por esse passado colonialista. Ele tinha que se gabar do alto da convicção da sua pretensa superioridade, o fato de Portugal de forma “amável” ter sido dos primeiros a abolir a escravatura, o que sabemos que é completamente falso visto que o Haiti foi o primeiro país a abolir a escravatura através de uma Revolução de pessoas africanas escravizadas que derrotou o exército napoleônico.

   O Estado português continua sem criar condições para que haja dados estatísticos sistemáticos e sérios sobre a situação dos negros e negras em Portugal, em várias áreas: emprego, educação, cultura, habitação etc.; tanto dos que vieram do continente como aqueles que nasceram aqui. A Polícia portuguesa continua a espancar negros e negras nos bairros impunemente, sem que ninguém do poder se incomode. Também, que saibamos nenhum presidente impediu que mais de uma dezena de negros tenham sido assassinados no espaço de uma década em Portugal, sem que tenha havido uma única condenação a pena efetiva. Com um dos assassinos a poder permitir-se dizer ao colega que: “acabou de estoirar os miolos a um preto”, referindo-se ao Élson Sanches “Kuku”, um miúdo de 16 anos cuja vida ele tinha acabado de tirar. O racismo também continua sem ser devidamente codificado pela jurisprudência portuguesa. Outro assunto espinhoso e que continua a ser um grande tabu, o qual também nenhum presidente foi capaz de trazer à superfície, é o reconhecimento da dívida histórica que Portugal tem com os povos que colonizou: o reconhecimento de que os movimentos de luta armada de libertação nos países colonizados impulsionaram a sublevação ocorrida no dia 25 de abril de 1974 em Portugal. Toda a classe política e intelectual portuguesa prefere assobiar para o lado tratando-se deste tópico. Todos estes aspetos que referimos são problemas que devem necessariamente ser enfrentados e resolvidos. Sem isso é impossível existir uma relação sã entre os africanos ou seus descendentes e os europeus. Por enquanto, essa relação é marcada pela predação, dominação e falta de respeito pura e simples.

   Portanto, está mais do que evidente de que não é com eleições que vamos sair desta opressão, mas sim com “auto-organização”. É capital que compreendamos que “Política” não é sinônimo de política dos políticos e dos partidos formalmente reconhecidos. Enquanto membros da sociedade civil, temos muitos potenciais que podemos usar para mudarmos a nossa situação. Se por exemplo, sabemos que no nosso bairro há um/a jovem que não sabe ler nem escrever, não vamos esperar que o Estado faça isso por nós, basta nos organizarmos nós mesmos e sensibilizar o/a jovem em questão de forma a podermos transmitir o que sabemos. O mesmo é válido para qualquer outra competência técnica ou académica. Tendo em conta que os negros e negras não têm controlo direto sobre nenhuma área da economia mundial, é essencial partilhar o mínimo de conhecimento ou prática de forma a beneficiar a coletividade, no sentido de aumentar a probabilidade de um dia termos o controlo sobre os meios de produção dos quais dependemos para viver. Se já sabemos e conhecemos a condição de exploração desavergonhada de trabalho de que a nossa população é alvo, torna-se urgente organizarmo-nos em torno dessa questão.

    A nossa posição coletiva de subalternidade atual exige que façamos um uso inteligente do nosso capital social, cultural e econômico. Qualquer vantagem de que beneficiemos devemos partilhar na comunidade, e torná-la coletiva. Isso, partindo de competências mais básicas indo até aquilo que Amílcar Cabral e Marx antes dele chamaram de “suicídio de classe”, aplicável às pessoas mais abastadas. Portanto, é importante compreender que toda a gente é apta a fazer política, e que existem multiplas formas de engajamento poliítico. A política de caráter popular de que precisamos já tem vindo a ser feita, podendo ser constatada em muitas organizações não partidárias, nas experiências associativas, coletivos, etc.. Há muitas experiências enriquecedoras desse tipo das quais pouco se fala. Essas associações e organizações preenchem um espaço deixado pelo Estado português nas comunidades da periferia das grandes cidades. O que falta fazer é generalizar esse espírito de capitalização de todas as nossas potencialidades, de forma concertada e idealmente com um cunho revolucionário.

   Não temos nada contra o envolvimento dos membros da nossa comunidade com a política partidária. Há objetivos concretos que podem ser alcançados com essa via, e a necessidade de representação da nossa comunidade é real, além de que cada um é livre de agir de acordo com a sua consciência e convicções. Todavia, a partir do momento em que concordamos que a nossa condição global exige uma transformação revolucionária, quer dizer, essencialmente uma mudança radical nas estruturas políticas e econômicas que determinam a nossa vida em sociedade, devemos reconhecer que a política partidária no quadro da democracia representativa gerida por aqueles que nos dominam é bastante limitada, pois a sua função é reproduzir precisamente a ordem que legitima a nossa subordinação. O máximo que esse sistema pode nos ceder, é ir fazendo algumas concessões aqui e ali de acordo com as circunstâncias e o grau das nossas reivindicações. O nosso envolvimento com a política não pode consistir em mendigar eternamente por direitos. E que não nos deixemos iludir pela incorporação recente mais significativa de negros e negras na cena política portuguesa, em termos de cargos de liderança e presença no parlamento. Se essa incorporação tem o mérito de aumentar um pouco mais o volume sonoro de algumas das nossas reivindicações e de espelhar a diversidade étnico-cultural existente no país, ela é claramente insuficiente para resolver os problemas estruturais que enfrentamos. A experiência de outros países e a história estão aí para nos provar isso. Ter um primeiro-ministro negro (embora de origem não-africana), uma ministra de Justiça negra, e deputados negros, apenas num sonho constituiriam um seguro de vida para nós. Basta olharmos para aquilo que é o nosso quotidiano hoje em Portugal, e pensarmos no que aconteceu no bairro da Jamaica, na Avenida da Liberdade em Lisboa, e no desfecho que o caso da agressão policial na esquadra da Alfragide teve e ainda de muitos outros casos de espancamento, tortura, que conhecemos que nem sequer chegaram aos tribunais.

   Também, é relevante sublinhar aqui a importância de sempre articularmos as nossas lutas aqui na diáspora com aquelas travadas no continente africano, pois é extremamente ilusório acreditar que os negros e negras vão ser plenamente respeitados enquanto a África estiver no lodo e a ser espoliada como tem sido de há uns séculos para cá. Que fique bem escuro: Nunca teremos enquanto negro/a/s, o pleno respeito e tratamento digno de um ser humano em nenhuma parte do Planeta Terra, enquanto a África não se levantar. Nunca. Por mais máscaras que utilizemos, por mais integrados e ricos que julguemos estar ou queiramos estar no Ocidente, isso nunca acontecerá.      

A LUTA CONTINUA

Referências

Almeida, Fábio Chang d.(2015). A direita radical em Portugal: da Revolução dos Cravos à era da internet. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 41, n. 1, p. 98-125, jan.-jun. 2015. Disponível online em: http://dx.doi.org/10.15448/1980-864X.2015.1.20463

Beeson, Mark. (2020). The Decline of the West: What is it, and Why Might it Matter? Asia Global Institute. The University of Hong Kong. (Online) Disponível online em: (PDF) “The Decline of the West”: What is it, and Why Might it Matter? (researchgate.net)

Bouamama, Said ; Collon, Michel. (2019). La Gauche et la Guerre. Investig’Action.

Kempf, Hervé. (2013). Fin de l’ occident, naissance du monde.  Editions du Seuil.

Mbembe, Achille. (2014). Crítica da Razão Negra. Antígona, Portugal.

Mbembe, Achille. (2017). Politica de inimizade.  Antígona, Portugal

Disponível online em : mbembe-critica-da-razacc83o-negra.pdf (wordpress.com)

 
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Publicado por em Fevereiro 8, 2021 em Plataforma Gueto

 

RECORDAR LUMUMBA É COMBATER OS INIMIGOS DE ÁFRICA

RECORDAR LUMUMBA É COMBATER OS INIMIGOS DE ÁFRICA

No dia 17 de janeiro de 1961 os governos imperialistas do Ocidente, apoiados pelos seus lacaios, executaram um dos maiores líderes  do   continente africano, o  Patrice Emery Lumumba. Lumumba (1925-1961) foi o primeiro Primeiro-ministro da República Democrática do Congo, após conduzir o seu  país à independência enquanto líder do Movimento Nacional Congolês.  Como é sabido, o Congo esteve sob o jugo da violência colonial belga desde que os imperialistas europeus  fizeram a divisão do continente africano,  de acordo com os seus interesses,  na famosa   Conferência de Berlim  (1884-85). Escusado será dizer que nenhum africano foi convidado para um banquete onde o Rei Leopold II da Bélgica (1835 -1909) recebeu  “o seu pedaço de bolo africano”: o Congo, um território oitenta vezes maior do que o seu “reinado belga”. Vendeu o seu peixe de “razões humanitárias” com promessas de construção de escolas, e sobretudo “libertar” os/as congoleses dos traficantes Árabes de negros escravizados. Havia uma grande cobiça pelo Congo por parte de inúmeros outros países europeus, por ser um território que detém uma estranha anomalia natural: ser muitíssimo rico em recursos. O congo possui  uma vasta gama de minérios, incluindo a borracha, cobalto, estanho, zinco, diamantes, minério de ferro, prata, cádmio,   európio, nióbio ou  columbite, tântalo. Alguns desses minérios são de grande valor estratégico. “O Urânio, por exemplo, tem sido usado para o fabrico de armas nucleares ao passo que minérios raros como o nióbio e tântalo são fundamentais para o espaço aeronáutico do século vinte um. Segundo os especialistas, a África possui cerca de 15% das reservas mundiais de nióbio e 80% dos depósitos de tântalo. O Congo por si só possui 60% de nióbio e 80% de tântalo das reservas africanas. Todos esses metais, junto com outros recursos valiosos como o gás metano (…) num país que possui ainda grandes quantidades de ouro, diamantes, café, chá, madeira” (…)[1]. Com o apoio dos Estados Unidos e Inglaterra, Leopold conseguiu transformar o Congo em  sua colónia pessoal porque, “possuía o Congo tal como John Rockfeller detinha a Standard Oil” ( Nzongola-Ntalaja, 2002, p.20. E “no início de 1900 todas as sociedades africanas que compõem a atual  República Democrática do Congo perderam a sua independência como resultado da invasão e ocupação europeias”[2], visto que  as pessoas eram torturadas e forçadas a assinar acordos que concedessem o direito as terras e todos os recursos. Para Leopold o Congo era uma empresa e os africanos bestas de carga, o que significa que todo o tipo de método era aplicado para que cumprissem o desígnio de acumulação de lucros. Embora não haja consenso entre historiadores, estima-se que cerca de 10 a 15 milhões de pessoas foram mortas, através de uma combinação mortífera de fome, doenças, assassinatos, raptos, violações, tortura e trabalho forçado, pelo Leopold e seus aliados. Importa ainda destacar que o trabalho forçado foi imposto para responder às grandes demandas do mercado de borracha, com a invenção do pneu em 1988 e a consequente produção em massa de bicicletas e outros componentes para veículos. Tal como todos os lacaios  dos imperialistas, Leopold encheu bem o seu bolso e os cofres da Bélgica, enquanto amontoava uma montanha de cadáveres no Congo. No leque de sadismo destacamos que as pessoas eram caçadas por diversão e desporto[3] e, ainda, que o próprio Rei Leopold tinha  um zoo-humano pessoal onde havia 267 pessoas africanas, expostas como peças no quintal do seu palácio de Tervuren[4]. O lucro obtido no Congo também permitiu a Leopold construir grandes obras públicas, vários edifícios em Bruxelas, inclusive o famoso Arco do Triunfo ou Arcadas do Cinquentenário. Após múltiplas denúncias internacionais dos crimes do rei Leopold, o parlamento belga assume o controlo do Congo em 1908, procurando reformar o colonialismo sem nunca responder às demandas das populações pela abolição do regime colonial. E assim, o Estado Belga assume o comando do território, classificado na época como um “verdadeiro escândalo geológico” por ser tão rico em recursos naturais, mas sem trazer nenhuma melhoria nas condições de vida dos congoleses[5]. O roubo, a exploração e pilhagem deram enormes lucros ao estado belga que o possibilitou a financiar  vários projetos e evitar que o país fosse literalmente à bancarrota,  durante a Segunda Grande Guerra dos brancos.  Roberto Godding, então ministro belga dos assuntos coloniais falava emotivamente que “Durante a guerra, o Congo foi capaz de financiar todas as despesas do governo belga em Londres, incluindo as dos serviços diplomáticos bem como os gastos das forcas armadas na Europa e África (…). Aliás, graças aos recursos do Congo, o Governo belga em Londres não teve  de fazer o empréstimo sequer de  um xelim ou um dólar e a reserva belga  de ouro pôde   ficar intacta[6]”. Nesse contexto de guerra, os congoleses contribuíram significativamente para o combate dos Aliados e para a derrota do regime nazi-fascista. Neste ponto deve-se ter presente a corrida decisiva que ocorreu na altura pelos minérios para suster as campanhas de guerra e produção de tecnologias militar, o trabalho forçado foi amplamente alargado no Congo “Belga”, sem esquecer os minérios, pois as bombas atómicas lançadas pelos Estados Unidas sobre Hiroxima e Nagasáqui foram construídas com o urânio extraído da mina de Shinkolobowe, pertencente à União Mineira do Alto de Katanga,  estabelecida pelo decreto do rei Leopold em 1906[7]. O paradoxo é ver que os governos liberais, possuidores de colónias e campos de trabalho forçado, segregação racial e linchamento de pessoas negras, no caso dos Estados Unidos, estavam a batalhar contra a Alemanha-nazi que estava a aplicar à “Europa processos colonialistas a que até aqui só os árabes da Argélia, os coolies da Índia e os negros da África estavam subordinados”[8] usando as palavras de Aimé Césaire.  Mesmo após a derrota do regime nazi pela União Soviética, nada mudou para os povos que estavam sujeitos à violência colonial e perseguição racial.  Nesses longos anos de uma suposta “missão filantrópica” dos colonialistas belgas, segundo Amílcar Cabral, apenas seis congoleses obtiveram diploma universitário, à custa de grandes sacrifícios das suas famílias. Apenas uns milhares sabem ler e escrever” (…) e trinta mil belgas ganhavam mais do que um milhão de africanos”[9].  Foi contra esse regime total de violência  e predação  que Patrice Lumumba e os seus camaradas  ousaram  combater.  No seu discurso de 30 de junho de 1960, dia do nascimento da República Democrática do Congo, dizia a todos e todas presentes, que no regime colonial belga os congoleses “eram exilados na nossa própria terra natal, a vida era muito pior que a própria morte”[10]. Lumumba acrescenta  que  durante “oitenta anos de domínio colonial e nossas feridas são muito frescas e dolorosas demais para serem esquecidas. Experimentamos trabalho forçado em troca de salários que não nos permitiam satisfazer nossa fome, vestir-nos, ter moradias decentes ou educar nossos filhos como entes queridos”[11].  Importa sublinhar, por exemplo, que  a plantação  do óleo de palma no Congo, durante o regime colonial belga, foi  financiada pela empresa britânica Lever Brothers, que  mais tarde construiu novas plantações do óleo de palma, em várias províncias congolesas, cujo lucro pavimentou o caminho para a fundação da Unilever[12]: um dos maiores conglomerados  de comida processada do mundo.  É contra essa petrificação da vida, do cérebro, da cultura e da humanidade que Lumumba lutou e dias,  antes de ser morto, escreveu a sua esposa Pauline Opango Lumumba que “ crueldade, insultos e tortura jamais poderão forçar-me a implorar por misericórdia, porque eu prefiro morrer de cabeça erguida, com uma fé indestrutível e uma profunda crença no destino de nosso país, do que viver submisso e renunciar aos  princípios que são sagrados para mim” [13]. Lumumba defendia a união dos povos africanos, alertando-os para as manobras dos colonialistas da criação de  divisões étnicas, tribais, linguísticas para manter o continente africano sobre o seu jugo predatório, mantendo-se firme: “Minha fé se manterá inquebrantável. Eu sei e eu sinto no fundo de mim mesmo que cedo ou tarde meu país se libertará de todos os seus inimigos internos e externos, que ele se levantará, como um só (…) para dizer não ao vergonhoso e degradante colonialismo e reassumir sua dignidade sob um sol puro[14]. Tal como Titina Silá, Josina Machel, Winnie Mandela,  Kwame Nkrumah, Sekou Touré,  Frantz Fanon, Amílcar Cabral, Lumumba, Félix-Roland Moumié e muitas outras e outros, Patrice Lumumba recusou ser um fantoche do (neo) colonialismo, o que levou com  que os inimigos de África o liquidassem. A sua morte foi planeada e realizada por uma equipa de execução belga em conluio com os Estados Unidos e as Nações Unidas. Lumumba e os seus camaradas foram despedaçados e os seus corpos dissolvidos em ácido, sobrando apenas os dentes.  Fizeram questão de esconder a sua morte por semanas porque sabiam perfeitamente  do impacto que a morte de Lumumba  teria nas lutas no continente africano e no mundo.  A notícia da sua morte teve reações em várias partes do mundo: protestos estudantis  eclodiram em várias cidades africanas como Casablanca ( Marrocos), Cartum ( Sudão), Acra ( Gana); nas cidades dos Estados Unidos, como Washington, Chicago, e sobretudo  Nova Iorque, onde fica a sede das Nações Unidas, os protestos foram muito fortes.  Na Europa, alguns protestos atravessaram Paris, Bruxelas, Bonn, Dublin, Belgrado, Roma, entre outras cidades . Também ocorreram protestos estudantis em Colombo, Karachi, Paquistão, Sri Lanka e Malásia. Na China o primeiro primeiro-ministro da República Popular da China  Zhou Enlai,  liderou  uma manifestação  que contou com a participação de cerca de 100 mil pessoas na capital chinesa. Vários líderes anticoloniais manifestaram a sua indignação e contextualizaram as razões da sua morte e dos seus camaradas. Entre eles encontrámos  as palavras do agrónomo, político, teórico, estratega e revolucionário Amílcar Cabral que conduziu a luta da libertação de Guiné Bissau e Cabo Verde. Segundo ele, “as forças do TRAIDOR Mobutu, armadas e pagas pelas Nações Unidas, prenderam, maltrataram, espancaram até morrer, o grande patriota africano PATRÍCIO LUMUMBA, que só queria desembaraçar o Congo e a África dos Colonialistas e dos Imperialista”[15].  O  traidor Mobutu foi um militar que governou o Congo,  como um bom ditador, corrupto, tirano e fantoche dos Estados Unidos após o assassinato de Lumumba. Mobutu conduziu o Congo para grandes conflitos   internos,    que envolveram dezenas de grupos armados, que arrastou outros países africanos para destabilização, causando milhões de mortos.  Malcolm X que assim como Cabral chamava Mobutu de traidor falou que “ Patrice Lumumba “é o maior homem negro que já caminhou no continente africano. Ele não temeu ninguém. Assustou tanto aquelas pessoas que tiveram de o matar. Não conseguiam comprá-lo, não conseguiam assustá-lo [16]”. Frantz Fanon, o psiquiatra, filósofo e revolucionário, escreveu que depois da viagem de Lumumba aos Estados Unidos ficou saliente que não era possível comprá-lo e que isso colocaria   em perigo os interesses dos imperialistas. Certo, naquele contexto “um Congo unificado com um anticolonialista militante à sua cabeça constituía um perigo real”[17] para todas as potênciais coloniais, inclusive Portugal, que fez de tudo “para sabotar a independência do Congo[18]”. O Congo,  enquanto gatilho da revolução africana  sob liderança de Patrice Lumumba, anticolonialista até os ossos como Lumumba, seria um golpe fatal para os interesses dos imperialistas. Algo que os próprios imperialistas perceberam. Segundo Fanon, “Os inimigos da África deram-se conta com um certo terror de que se Lumumba triunfasse em pleno coração do dispositivo colonialista (…) a transformar-se em comunidade renovada, uma Angola “província portuguesa” e finalmente a África Oriental, acabava-se a África “deles”, acerca da qual tinham planos muito precisos[19]”. Isto era mais do que evidente aos olhos dos imperialistas, principalmente dos  Estados Unidos, que no contexto da guerra fria com a União Soviética, desconfiava que Lumumba fosse um comunista, por isso tomaram logo medidas para neutralizá-lo. A história das lutas de libertação do Sul Global ensina que o imperialismo não hesita em premir o gatilho quando os seus interesses estão em risco.   Os criminosos internacionais da Amerikkka ( CIA) começaram por elaborar vários cenários de assassinato, inclusive envenenamento através de pasta de dente. Nos arquivos desclassificados  dos Estados Unidos, Lawrence Devlin, um agente da CIA no Congo, escreveu para os seus superiores e colegas que “Patrice Lumumba nasceu para ser um revolucionário”[20] e  sugeriu que fossem tomadas  medidas urgentes se os Estados Unidos não quisessem ter uma outra Cuba. O Ministro Belga dos Assuntos Africanos, por sua vez, estava ansioso e assustado,  enviou um telex que continha a informação de que  “a manutenção dos interesses belgas no Congo e Katanga passasse  pela eliminação definitiva de Patrice Lumumba[21]. É por essas e outras razões que o autor Ludo De Witte afirmou que o  assassinato de Patrice Lumumba é o “mais importante assassinato do século 20”.

Mais de meio século após o seu assassinato, torna-se cada vez mais necessário recordar  Lumumba, tanto pela sua lucidez  como pela sua coragem e determinação inquebrantáveis em  prosseguir com a luta  pela libertação total do continente africano do jugo imperialista,  (neo) colonialista e dos seus apoiantes. Tal como ele disse, pouco antes de ser morto,   “ o dia virá quando a história falará. Mas não será a história que será ensinada em Bruxelas, Paris, Washington ou nas Nações Unidas. Será a história que será ensinada nos países que terão se libertado dos colonialistas e de seus fantoches”.  Esse dia chegará, não por causa de algum milagre ecuménico ou obra de espírito santo, mas através de uma luta revolucionária, popular organizada cujo objetivo é  pôr os recursos do nosso vasto continente inteiramente ao dispor dos povos africanos e da humanidade.  Recordar Lumumba é lutar contra os inimigos de África e de todos os povos oprimidos do globo.  

REFERÊNCIAS

Cabral, Amílcar ( 1961)   Morreu Lumumba para que a África viva! -Disponível em: http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=04616.076.024&fbclid=IwAR2f-iSv_oERfdd53E14htvIAS9AfiK1UTVSFCuEVLSAPkizOd5dUaojC78%20-%20!4

Fanon, Frantz (1980). Em Defesa da Revolução Africana

 Nzongola-Ntalaja, G. (2002). The Congo from Leopold to Kabila: A people’s history. London: Zed Books

Lumumba, Patrice ( 1960)  Discurso da Declaração de  Independência da República Democrática do Congo. Disponível em:     https://www.novacultura.info/post/2020/06/30/lumumba-discurso-da-proclamacao-da-independencia-do-congo

Lumumba, Patrice, (1961). Letter from Thysville Prison to Mrs. Lumumba. Disponível em:  https://www.marxists.org/subject/africa/lumumba/1961/xx/letter.htm

Rannard,  Georgina:  Webster,  Eve, 2020. Leopold II: Belgium ‘wakes up’ to its bloody colonial past. Disponível em https://www.bbc.com/news/world-europe-53017188

RIAO-RDC & GRAIN, 2015. Agro-colonialism in the Congo: European and US development finance bankrolls a new round of agro-colonialism in the DRC. Disponível em:   https://www.grain.org/article/entries/5220-agro-colonialism-in-the-congo-european-and-us-development-finance-bankrolls-a-new-round-of-agro-colonialism-in-the-drc

Soudan, François, 2021. DRC: How the CIA got Patrice Lumumba. Disponível em: 

https://www.theafricareport.com/58653/drc-how-the-cia-got-under-patrice-lumumbas-skin/

X, Malcolm (1964) –  Speeches by Malcolm X – Disponível em:  http://www.hartford-hwp.com/archives/45a/459.html


[1] Nzongola-Ntalaja, 2002, p. (22 -28.   

[2] Idem  p. 13

[3] Nzongola-Ntalaja, 2002.  

[4]   Rannard,  Georgina:  Webster,  Eve, 2020.

[5] Nzongola-Ntalaja, 2002.

[6] Nzongola-Ntalaja, 2002 , p.29

[7] Nzongola-Ntalaja, 2002 , p.29-30

[8] Césaire, Aimé, 1978, p. 18.

[9] Cabral, Amílcar, 1961. 

[10] Lumumba, Patrice, 1960. 

[11]Ibid 

[12] RIAO-RDC & GRAIN, 2015  

[13] Lumumba, Patrice, 1961. 

[14] Idem 

[15] Cabral, Amílcar, 1961,  

[16] Malcolm X, 1964. 

[17] Fanon, Frantz, 1980, p.231)  

[18] Idem 

[19] Fanon, 1980, p.  231-32 

[20] Soudan, François, 2021.

[21] Idem

 

Homenagem da Plataforma Gueto à Mulher Negra

   Nos próximos meses, a Plataforma Gueto vai prestar tributo à Mulher Negra, através da divulgação da biografia de uma Mulher Negra no início de cada mês. Tratar-se-á de figuras femininas importantes da história negro-africana, tanto dos tempos da antiguidade como figuras da atualidade, tendo todas em comum o fato de serem grandes exemplos de resistência, de luta pela liberdade, justiça, protagonismo feminino, e terem lutado e contribuído para o melhoramento da condição do/a/s negro-africano/a/s no mundo. O objetivo é não apenas homenagear essas mulheres, mas também incitar à reflexão sobre as lições que podemos tirar hoje sobre as suas ações, e utilizar isso de forma construtiva e revolucionária. Como forma de introdução, antes de expor a primeira biografia, apresentamos o texto “Reflexão sobre a Condição da Mulher Negra”.

 

Reflexão Sobre a Condição da Mulher Negra

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   Mulher Negra Africana. As palavras são largamente limitadas para descrevê-la em toda sua Magnificência, Pluralidade e Complexidade. Mas, humildemente, vamos fazer um esforço para em algumas palavras, dar uma ideia daquilo que ela é: Mãe da Humanidade e da Civilização, Entidade Primordial, Sagrada, Matriz, Exemplo Maior de Resistência e Resiliência, Base, Pilar da existência, da vida familiar e social dos africanos; Devidamente Adorada e Divinizada no passado pelos nossos ancestrais, antes da cristianização e islamização do continente africano. Modelo de Beleza, Amor, Inteligência, Força, Poder, Coragem, Respeito, Gratidão, Generosidade, Compaixão. Modelo enquanto Mãe, Irmã, Esposa, Filha, Guerreira, Líder, Educadora e Trabalhadora.

Mulher Negra pinterest

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   Contrariando todo esse Esplendor da Mulher Negra, subjacente à sua realidade existencial, está o fato dela ser alvo da mais extrema sujeição, objetificação e hipersexualização da história humana. Ela foi e tem sido objeto da mais intensa opressão e abuso, derivados de uma perceção errônea, injusta e racista da sua inferioridade pelos opressores. Resultado de vários séculos de dominação, os próprios homens negros se convenceram da inferioridade das mulheres negras, reproduzindo sobre elas, práticas opressoras antes exclusivas aos senhores de escravizados e colonialistas. A mulher negra, ela mesma internalizou um complexo de inferioridade, à força de ser brutalizada e bombardeada com avaliações negativas a seu respeito e atos discriminatórios sistemáticos.

   Portanto, falar de Mulher Negra, é falar dessas duas dimensões: uma que realça o seu papel único e primordial na história da humanidade, e outra que assenta no seu rebaixamento e opressão. Falar de Mulher Negra, é também falar de multiplicidade, seja em termos étnico-culturais, geográficos, classe, estatuto social etc. Mulher Negra pode significar aquela nascida na diáspora ou no continente africano. Pode significar a mulher dos povos Masai, Himba, Khoi Khoi ou a Mulher Negra das Caraíbas. Pode querer dizer Michelle Obama, Oprah Winfrey ou algumas milionárias da África . Mas, também pode querer dizer a Mulher Africana que limpa escadas de prédios e escritórios nas capitais europeias, que trabalha em restaurantes, lojas ou hotéis. Pode querer dizer aquelas negras que têm que limpar as fezes e urina das pessoas idosas brancas, em casas particulares ou lares de Idosos. Pode querer dizer aquelas que morrem afogadas nos mares, ao tentarem chegar à Europa, em embarcações sobrecarregadas de pessoas, sonhos e esperanças. Pode querer dizer jovens negras descendentes de africanos que nasceram na Europa, que têm curso superior, que são funcionárias públicas ou trabalhadoras no setor terciário. Pode querer dizer jovens negras descendentes de africanos com curso superior, mas que por morarem em bairros considerados sensíveis, e por serem negras, vêm-lhes negados postos de trabalho adequados à sua formação e competências. Pode também querer dizer jovens com pouca instrução escolar e no desemprego, ou com empregos que não vão além dos restaurantes de Mcdonald’s ou caixas de supermercados. O que terão todas essas categorias de mulheres negras em comum? Será apenas a cor da pele e a ascendência africana? Qual é a posição ontológica da mulher negra?

   Recentemente, vimos um vídeo no qual uma romancista negra de nacionalidade francesa, Marie Inaya Munza, afirma que é necessário abandonar os clichês relativos à mulher negra, como aquele que a retrata como trabalhando nas limpezas e outras atividades pouco valorizadas socialmente; como aquela mulher que “é agressiva, que fala gritando, que não é formada, que vem do gueto, que não é interessante ou que está sempre presa nas mesmas representações e rotina, estando associada à escravatura, ao trabalho forçado e doméstico etc”. Essa escritora diz que a mulher negra evoluiu, referindo-se às gerações que nasceram na Europa, as quais ela designa de afropeias, pois, hoje em dia, encontram-se mulheres negras a trabalhar nas mais diversas áreas, como administração, escritórios etc. O seu romance Black in the City (2017)[1] conta a história de uma heroína negra, Amanda Parks, que incarna essa nova geração de mulheres negras citadinas empreendedoras, que possuem uma dupla cultura ou múltiplas origens e identidades, tendo maiores oportunidades de mobilidade social, se comparada com as gerações anteriores. Estamos plenamente de acordo com a afirmação e iniciativas da autora, no sentido de neutralizar os clichês pejorativos concernentes às mulheres negras, que ainda prevalecem na sociedade.

   Contudo, queremos fazer duas observações que julgamos serem importantes, e que também nos servirão de trampolim para respondermos à questão que colocamos atrás sobre o que é que todos os tipos de mulheres negras que mencionamos têm em comum. A primeira observação, é que essa nova geração deve ter bastante cuidado para não reproduzir os mesmos estereótipos e preconceitos inferiorizantes, que a sociedade dominante demonstra em relação às mulheres negras que trabalham nas limpezas, que moram em áreas socialmente desfavorecidas etc. Assim, quando essa romancista afirma que a Mulher Negra evoluiu, é necessário saber o que é que essa evolução significa, concretamente. A tendência para as mulheres dessa geração moderna, de se considerarem (mesmo que inconscientemente) superiores às mulheres da geração das suas mães e avós é bastante real, devido ao fato de terem sido socializadas num quadro de primazia dos valores eurocêntricos.

   A segunda observação consiste no seguinte: é importante não limitar a possibilidade de evolução da mulher negra à sua integração nas sociedades europeias ou ocidentais. Isso, seja considerando evolução como querendo simplesmente dizer “mudança através do tempo”, ou como melhoramento, progresso “mudança de um estado simples para um outro mais complexo”, como é entendida na maior parte dos casos (sendo obviamente questionável, a compatibilidade entre o melhoramento da sua condição e sua “integração” nas sociedades europeias, a qual, a persistência atual da sua subalternidade põe em causa). Seja qual for a interpretação, a evolução da Mulher Negra não é um processo de sentido único. Embora Marie Munza explicite bem que ela trata do contexto europeu, mais especificamente do contexto francês, é importante ter este aspeto em mente. Evolução da Mulher Negra não é sinónimo de assimilação da cultura europeia, nem da sua simples incorporação em esferas sociais antes a ela inacessíveis.

   Agora vamos nos ocupar de responder à questão colocada acima, ou seja, o que é que as Mulheres Negras referidas têm em comum. Ora o que essas mulheres têm em comum é essencialmente o fato de serem racializadas e subalternas. Por racializadas, entendemos que elas são categorizadas com base nas suas características físicas, morfológicas e culturais, por um sistema opressivo cujas maiores manifestações foram a escravização dos negros pelos árabes e europeus, acrescido pelo colonialismo e processos atuais de dominação exercidos à escala mundial. Sistema esse, que pré-determina todos os papéis sociais que a mulher negra é suscetível de desempenhar. A racialização e subalternidade da Mulher Negra transcendem as diferenças culturais, geográficas e de condição económica, estando estabelecidas globalmente. Isto é algo que pretendemos deixar bem escuro. Nas condições atuais, por mais bem sucedida e rica que uma Mulher Negra seja, ou por mais afropeia que ela se julgue, ela não deixa de ser racializada e subalterna no contexto da sua relação com a supremacia branca. A Mulher Negra, tal como o homem negro, carece de soberania ontológica. Ela não tem o poder, nem a liberdade de determinar plenamente aquilo que ela é ou vai ser na vida ou no mundo.

  Para exemplificar como operam a racialização e subalternização da Mulher Negra, vamos pegar no caso de uma das mulheres negras mais ricas do Planeta: Oprah Winfrey. Oprah, é uma grande mulher, que apresenta muitos dos atributos positivos caracterizadores da Mulher Negra, que referimos anteriormente. Não obstante ter tido uma infância complicada, ela é uma mulher bem-sucedida, e integrada segundo os padrões ocidentais. Oprah possui uma fortuna avaliada em 4 bilhões de dólares. [2] Tendo sido a apresentadora de televisão mais famosa do mundo, atriz e empresária, vencedora de múltiplos prêmios Emmy pelo seu programa The Oprah Winfrey Show, o talk show com maior audiência na história da televisão norte-americana. É também uma influente crítica de livros, uma atriz indicada a um Óscar pelo filme A cor púrpura e editora da revista The Oprah Magazine. Segundo a revista Forbes, Winfrey foi eleita a mulher mais rica do ramo de entretenimento no mundo durante o século XX, uma das maiores filantropas de todos os tempos e a primeira mulher negra a ser incluída na lista de bilionários, em 2003. Em 2010, foi a única mulher a permanecer no topo da lista durante quatro anos. Perante um percurso tão brilhante, a questão que se coloca é: como é que uma pessoa com semelhante currículo e estatuto pode ser considerada subalterna?

A Mammy Moderna

   A Mammy é uma das mais conhecidas figuras caricaturais da Mulher Negra, desenvolvida no tempo da escravização dos negros no sul dos EUA, constituindo parte da imaginação nacional e popular americana, divulgada através da literatura, cinema, televisão e outros meios de comunicação. Ela é representada como sendo uma mulher de cor escura, gorda, baixa de altura, lábios grossos, ombros largos. Mammy é geralmente uma mulher disciplinada e obediente, feliz por servir os brancos, sendo de uma presença marcadamente alegre – sempre sorridente, ela frequentemente canta, conta histórias e piadas, enquanto trabalha. Ela é geralmente empregada pessoal da senhora branca, cozinheira, enfermeira, podendo desempenhar uma grande variedade de serviços sem ser compensada financeiramente. Ela é fortemente associada aos cuidados prestados às crianças brancas, primeiro enquanto escravizada, depois enquanto “mulher livre”, estando intimamente apegada a elas emocionalmente. Ela é considerada “parte da família”. Também de sublinhar a sua intensa devoção e submissão à família branca, as quais são reflexo da sua inferioridade[3]. As suas roupas são típicas de uma doméstica, marcadas por cores brilhantes, e incluindo lenço de cabeça e avental. Muitas vezes, Mammy designa o título, mas também o único nome atribuído a determinadas Mulheres Negras. Muitas mulheres negras que foram registadas com um nome usual, acabaram por ser chamadas simplesmente por Mammy, a ponto de as pessoas que as rodeavam não saberem o seu verdadeiro nome. Ela é descrita como sendo bruta, abusiva, violenta, agressiva com os seus filhos, contrastando com a sua dedicação, paciência e delicadeza que ela demonstra com as crianças brancas. Os seus próprios filhos geralmente são sujos e mal-educados, podendo no entanto, servir como companheiros de brincadeira das crianças brancas. A Mammy “exerce uma autoridade considerável dentro da casa da plantação e, consequentemente, mantém uma certa dose de respeito entre os escravos. Muitos escravos a consideram indigna de confiança por ela se identificar tão completamente com a cultura que os oprime”[4]. “Subordinação, nutrição e autossacrifício constante, eram esperados enquanto ela cumpria as suas obrigações domésticas” (Jewell, 1993).

   Um dos traços mais simbólicos da figura de Mammy é “o seu papel maternal”. Mammy é a base da assistência maternal tanto das famílias de escravizados quanto das famílias dos escravizadores. Sanders [5], diz que devido às teorias do essencialismo racial bastante difundidas no século XIX, as mulheres afroamericanas eram vistas como possuindo capacidades superiores inatas para cuidar das crianças brancas, comparativamente às mulheres brancas. Consequentemente, a Mammy surge muitas vezes como substituindo as mães brancas, tendo ao mesmo tempo uma relação ambígua com os seus próprios filhos. O estereótipo de Mammy era a principal maneira pela qual os americanos brancos olhavam para as mulheres negras desde o início do século XIX até a década de 1950. Entre as personagens mais famosas estão: a Tia Jemima, Hattie McDaniel em “Gone with the Wind” (1939), Nell Carter em “Gimme a Break” (1981-1987).     Muito depois da abolição oficial da escravatura dos negros, o estereótipo de Mammy continuou a colocar uma cara feliz na posição humilde das mulheres negras na sociedade, ajudando a tranquilizar os corações das pessoas brancas em todos os lugares. As mammys eram descritas como estando tão felizes em servir os brancos que, nos filmes americanos do início de 1900, são apresentadas a abdicar das riquezas e até mesmo da liberdade, de forma a poder continuar a servir “a família branca”. A Mammy é apenas uma entre muitas figuras caricaturais produzidas pelo racialismo doentio americano, visando negros e negras. Outros exemplos são: saphire, jezebel, uncle-tom, coon, etc…

   Se a figura de Mammy é em parte uma personagem fictícia, com características exageradas e estereotipadas projetadas pelo imaginário da sociedade americana branca dominante, por outro lado ela corresponde em alguns aspetos à condição real de muitas mulheres negras. Vários estudos demonstram que a imagem de Mammy tem consequências negativas no funcionamento psicológico das mulheres negras, nos seus hábitos alimentares e forma física (Neal and Wilson, 1989), (Boyd-Franklin, 1989), (Carolyn West, 1995). Não é raro entre as mulheres negras, que características como cor da pele acentuadamente escura e cabelo crespo, tipicamente associadas com a imagem de Mammy, sejam causa de vergonha e sentimentos de ausência de atratividade. As suas homólogas de cor mais clara, são frequentemente confrontadas com perguntas sobre as suas origens raciais, e se sentem culpadas devido às vantagens de que beneficiam devido aos seus traços físicos mais próximos dos brancos (Neal and Wilson, 1989). Por outro lado, “a imagem de Mammy continua a representar as condições económicas e de trabalho de muitas Mulheres Negras pobres” (Carolyn West, 1995, p.459).

   Voltando a Oprah Winfrey, é evidente que ela incarna a Mammy dos tempos modernos. Ela apresenta muitas das características da Mammy que referimos, embora seja rica, podendo sem dúvida ser considerada “o substituto emocional da feminilidade suburbana branca”. As semelhanças entre Oprah e a atriz Hattie McDaniel[6] são flagrantes. Entre os traços típicos da Mammy que podemos apontar na figura de Oprah, está a satisfação em dar assistência emocional aos brancos. Durante os 25 anos de apresentação do seu programa televisivo ela era uma espécie de canal, que permitia uma evacuação das emoções. Ter a assistência e amparo de Oprah é como ir ao psicólogo sem ter que pagar por isso. O público de Oprah era predominantemente feminino, branco e com mais de 55 anos. À escala nacional nos EUA 7,4 milhões de pessoas assistiam ao programa de Oprah diariamente – cerca de 2,6% dos lares americanos. Quatro por cento das mulheres americanas (cerca de 5,7 milhões) visionavam diariamente, em comparação com 1,2% dos homens (1,7 milhão de pessoas). No geral, 2% de todas as pessoas de 18 a 49 anos visionavam o programa de Oprah. O público de Oprah também é em geral, predominantemente branco: 5,9 milhões de brancos viam o programa, em comparação com 1,4 milhões de negros, sendo o seu impacto bastante reduzido entre a população hispânica – apenas cerca de 230.000 hispânicos visionavam o programa diariamente[7].

   A figura maternal que ela representa inscreve-se indubitavelmente na continuidade da função simbólica e real da Mammy da plantação. Trata-se de uma residente na casa da “plantação”, que neste caso devemos transpor para um espaço social mais amplo, a sociedade branca americana. Ela é uma negra que foi moldada para satisfazer os desígnios  dessa sociedade, representando a única mulher negra que uma boa parte das mulheres brancas encontra nas suas vidas. ”Oprah é provavelmente a única mulher negra tolerada na maioria das famílias brancas, e o fato de ela vir através da televisão torna muito mais fácil desfrutar da experiência de Mammy”[8]. A sociedade americana necessita de Mammys, numa relação que podemos classificar de “predatória”. Isso faz com que muitas mulheres negras de destaque (como Michelle Obama, por exemplo) sejam empurradas pela sociedade a assumir o papel de Mammy, das mais variadas formas. Elas assumem esse papel, em grande medida de forma inconsciente.

   A Oprah representa a exceção racial, a negra excecional, que venceu e que deve servir de modelo aos negros que pretendem ascender socialmente, sendo ao mesmo tempo uma espécie de embaixadora entre o mundo branco e o mundo negro. Enquanto para os brancos o sucesso é uma condição natural, “os negros são obrigados a navegar no espaço branco como condição da sua existência”[9], e com a exigência de não esquecer o seu lugar de negro. Um negro pode ser bilionário, mas ele será sempre um “negro”. Foi disso que Oprah foi lembrada por uma empregada branca de uma loja de marcas na Suíça, em 2013, quando ela quis comprar uma mala e a empregada, sem conhecer Oprah negou dar-lhe aquela que ela queria, por considerar que era demasiado cara para ela[10]. Não se trata aqui de desvalorizar ou rebaixar Oprah, ou de afirmar que tudo o que ela é se reduz à figura de Mammy, mas sim de situar sociologicamente o seu papel e função enquanto Mulher Negra na sociedade norte-americana.

Mammy e branca thegriot.com

Thegriot.com

 

Oprag Mammy

Aunt Jemmima pinterest.com

A Mammy mais famosa Jemima transformada em marca de panquecas

   A caricatura, a inferiorização, objetificação e a proliferação de estereótipos desumanizantes, tendo a mulher negra como alvo, não são uma exclusividade dos EUA. Trata-se de um fenómeno global, que se manifesta também nas Caraíbas, América latina e Europa. Falando do contexto português, quem pensa que a figura de Mammy e outras representações depreciativas da Mulher Negra estão distante da nossa realidade, engana-se redondamente. Basta pensarmos na personagem feminina mais famosa do comediante português Fernando Rocha: Matumbina. Matumbina representa a mulher negra que veio da África, como sendo selvagem, animal sexual, bruta, promíscua, e baixa moralmente. Nós, os negros e negras de Portugal, estamos tao bem domesticados, e temos o racismo de tal forma interiorizado, que nunca levamos a cabo qualquer oposição séria e firme a esse tipo de rebaixamento e desumanização. Até houve uma “atriz” negra que se disponibilizou para desempenhar o papel de Matumbina, dando espetáculos pelo país a fora, ajudando esse comediante a ganhar dinheiro e prestígio com base na degradação da imagem, do ser de homens e mulheres negros e ciganos. Para essa ”atriz”, ridicularizar-se enquanto mulher negra africana não é um problema. Trata-se pura e simplesmente de “divertir”, “entreter”, “trabalhar”, ganhando dinheiro e fama ao promover a sua própria inferiorização, o que era precisamente o móbil de Hatie McDaniel, e outros atores e atrizes afroamericanos impulsionados pelos Minstrel shows[11]. A partir da década de 1940, os papéis de subserviência que McDaniel e outros artistas afro-americanos desempenhavam, com frequência foram alvo de críticas fortes por parte de organizações como a NAACP. Em resposta às críticas da NAACP, McDaniel disse: “Eu prefiro representar o papel de uma empregada doméstica e ganhar 700 US $  por semana, do que ser uma por US $ 7”.

   No contexto português, personagens como Matumbina têm vida longa, isso se não forem imortais. A ridicularização a eles associados é perfeitamente normalizada na sociedade, os próprios negros se divertem com as piadas, distanciando-se da imagem dos personagens, criando um binarismo, pois Matumbina é sobretudo aquela negra que não está adaptada ao modo de vida europeu, “Matumba”, na linguagem corrente. Ela fala um dialeto e sotaque do português específicos, originários de Angola, por exemplo. Matumbina é a outra. A ela opõem-se as negras assimiladas, integradas na sociedade portuguesa, que falam um bom português e têm modos discretos e sofisticados, mais próximos da imagem de princesa branca, pura. As negras assimiladas podem assim se reconfortar, gozando com as Matumbas, que se encontram na base da escala hierárquica cujo topo é ocupado pelas brancas, que por sua vez se tranquilizam na sua identidade com a imagem caricatural das Negras em geral. A auto-humilhação associada a essas representações denunciam múltiplas patologias psíquicas, entre as quais a mais óbvia é a síndrome de Estocolmo, sendo um exemplo do racismo interiorizado. Segundo Suzanne Lipsky (2016) ,  o racismo internalizado “é a aceitação pessoal consciente ou inconsciente das visões, estereótipos e preconceitos racistas da sociedade dominante sobre o seu grupo étnico de pertença. Dá origem a padrões de pensamento, sentimento e comportamento que têm como resultado discriminar, minimizar, criticar, encontrar falhas, invalidar e odiar-se a si mesmo enquanto simultaneamente se valoriza a cultura dominante”.  ( http://www.rc.org/publications/journals/black_reemergence/br2/br2_5_sl.html , Suzanne Lipsky) .

 

 

 

Negra Brasil

Exemplo de objetificação e sexualização da Mulher Negra. O Ministério da Justiça brasileiro processou a Kirin, dona da marca Devassa, por causa de um anúncio que foi veiculado entre 2010 e 2011 e considerado abusivo. O anúncio traz uma ilustração de uma mulher negra com um vestido de gala com as costas abertas, junto à mensagem “É pelo corpo que se conhece a verdadeira negra”. https://mundonegro.inf.br/tres-passos-para-diversidade-sincera-na-publicidade/

   Os meios de comunicação social são o principal veículo de difusão dos estereótipos concernentes à Mulher Negra. O site desacato.info (2017)[12]enumera alguns dos estereótipos mais correntes divulgados pelos Media. Entre eles, estão: o de “Negra Durona”. Em muitos filmes, telenovelas e situações do quotidiano, as mulheres negras costumam ser descritas como seres inabaláveis, com poderes sobre-humanos para aguentar todo o tipo de sofrimento imaginável. Esse é um estereótipo que tem sido usado durante séculos como justificação de todo tipo de violência e opressão contra elas, indo do trabalho forçado, ao uso do seu corpo como objeto de estudos. De referir aqui que a ginecologia moderna nasceu com base em experiências feitas com Mulheres Negras. James Marion Sims, considerado o pai da ginecologia, deve esse título devido aos métodos bárbaros que ele utilizou em mulheres escravizadas e que dispensavam anestesias. Ele levou a cabo uma série cirurgias experimentais em Mulheres Negras escravizadas que sofriam de fístulas vesicovaginais, para investigar e melhorar as técnicas de tratamento. Ele usou mulheres negras como cobaia durante 5 anos, sendo que numa destas mulheres, Sims procedeu a pelo menos 30 operações no mesmo sítio. Ele aperfeiçoou as suas técnicas com a experimentação em Mulheres Negras e só mais tarde, iniciou os procedimentos de cirurgia reparadora em mulheres brancas, com o uso de anestesia [13]. No Brasil, até hoje as mulheres negras são aquelas que recebem menos anestesia nos partos [14]. Esse estereótipo de “Durona” permite que as pessoas não se comovam com o sofrimento da Mulher Negra, pois, ela é aquela que “aguenta tudo”. Outros estereótipos bastante difundidos pelos meios de comunicação, além das já clássicas escravas e empregadas domésticas, são: “A Mulher Negra como amiga da protagonista branca”, da “negra sensual e fogosa”, e “confucionista”. O estereótipo da negra sensual, fogosa insaciável ou Jezabel, é integrante da hipersexualização da Mulher Negra que serve de justificação para todo o tipo de violência, e particularmente de cariz sexual. No Brasil, as Mulheres Negras têm três vezes mais probabilidade de serem violentadas sexualmente[15]. A taxa de homicídio de Mulheres Negras em 2016 foi de 5,3 em cada 100 mil negras e de 3,1 para mulheres brancas [16]. “De 2003 a 2013, o número de homicídios de brancas diminuiu de 1.747 vítimas para 1.576. Isso representa uma queda de 9,8% no total de homicídios do período. Já os homicídios de negras aumentam 54,2% no mesmo período, passando de 1.864 para 2.875 vítimas”[17]. No resto do mundo, a situação não é muito diferente. A Mulher Negra é sistematicamente vítima de violência e homicídio pelo simples fato de ser negra. Vem-nos à memória, o caso de Sandra Bland nos EUA em 2015, selvaticamente assassinada. Mais perto de nós, tivemos recentemente o caso da agressão bárbara por um neo nazi de Nicol Quinayas no Porto [18]. E também o da agressão racista da atleta negra italiana Daisy Osakue, de origem nigeriana[19], assim como o caso da advogada negra brasileira Valéria dos Santos, barbaramente expulsa de um tribunal, enquanto ela se encontrava em pleno exercício das suas funções numa audiência. (https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/09/11/advogada-e-algemada-e-presa-durante-audiencia-em-juizado-em-duque-de-caxias.ghtml). Podíamos continuar aqui com muitos mais exemplos de formas de degradação, rebaixamento e dominação da Mulher Negra no mundo, cuja lista é infelizmente bastante longa.

   Podemos concluir que a Mulher Negra, onde quer que ela se localize, possui uma “substância ou essência comum”, que faz com que ela seja subalternizada e oprimida de forma sistémica, global e multidimensional. Essa essência comum, consiste nas suas características genéticas e físicas, entre as quais a mais visível é a cor da pele, e num plano mais geral, as suas origens étnicas, culturais, e um passado marcado por séculos de opressão racial. Caso alguém pense em acusar-nos de essencialismo ou de termos uma visão demasiado redutora da identidade das Mulheres Negras, propomos a essa pessoa que nos explique o porquê de a Mulher Negra ser alvo de opressão, racismo e discriminação em todos os cantos do planeta terra, e de tratar de acabar com esse sistema opressivo, antes de nos acusar de seja o que for ou de criar um debate identitário. Vimos que a dominação da Mulher Negra é independente do seu país ou região de residência, da sua nacionalidade, profissão ou classe social. Mesmo as Negras que têm um elevado poder económico, têm que fazer face à humilhação e rebaixamento em termos sociais, psicológicos e morais. Tudo o que referimos deve servir para refletirmos seriamente sobre o que significa ser Mulher Negra no mundo de hoje, e sobretudo para tomarmos medidas concretas no sentido de restabelecer a sua imagem e dignidade.

Fontes Bibliográficas

Boyd-Franklin, N. (1989). Black families in therapy : A multisystems approach. New York : Guilford.

Boyd-Franklin, N. (1991). Recurrent themes in the treatment of African American women in group psychoteraphy. Women and Theraphy, 11 (2), 25-40

Neal, A. & Wilson, M. (1989). The role of skin color and features in the Black community: Implications for Black women in theraphy. Clinical Pshychology Review, 9, 323-333.

West, Carolyn. (1995). Mammy, Sapphire, and Jezebel: Historical images of Black women and their implications for psychotherapy. Psychotherapy Theory Research & Practice – University of Washington Tacoma. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/232579424

 

Notas:

[1] https://blackinthecityworld.com

[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Oprah_Winfrey

[3] https://www.press.umich.edu/pdf/9780472116140-intro.pdf Mammy a century of race, gender and southern memory, Kimberly Wallace Sanders p.6

[4] https://www.press.umich.edu/pdf/9780472116140-intro.pdf Mammy a century of race, gender and southern memory, Kimberly Wallace Sanders p.6

[5] https://www.press.umich.edu/pdf/9780472116140-intro.pdf Mammy a century of race, gender and southern memory, Kimberly Wallace Sanders p.8

[6] https://en.wikipedia.org/wiki/Hattie_McDaniel

[7] http://stuffblackpeopledontlike.blogspot.com

[8] http://stuffblackpeopledontlike.blogspot.com/2011/05/oprahs-last-show.html

[9] “The White Space” Elijah Anderson, Sociology of Race and Ethnicity 2015, Vol. 1(1) 10–21 © American Sociological Association 2014

[10] https://www.theguardian.com/…/oprah-winfrey-swiss-apology-raci…

[11] black-face.com/minstrel-shows.htm

[12] http://desacato.info/8-estereotipos-de-mulheres-negras-que-a-midia-precisa-parar-de-usar/

[13] https://diariodebiologia.com

[14] https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,pretas-recebem-menos-anestesia-imp-,703837

[15] http://desacato.info/8-estereotipos-de-mulheres-negras-que-a-midia-precisa-parar-de-usar/

[16] https://www.cartacapital.com.br/diversidade/brasil-mata-71-mais-mulheres-negras-do-que-brancas

[17] https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf

[18] https://expresso.sapo.pt/sociedade/2018-06-28

[19] https://www.efe.com/efe/brasil/esportes/atleta-italiana-negra-fica-ferida-ao-ser-agredida-com-ovada-no-olho/50000244-3706142 

 
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Publicado por em Outubro 7, 2018 em Plataforma Gueto

 

Sobre o Racismo em Portugal

 

Quando insistimos na questão do racismo em Portugal, algumas pessoas pensam que nós somos exagerados, mas a verdade é que o racismo em Portugal é algo bem real e concreto. O racismo em Portugal tem os seus causadores concretos: os indivíduos (cada um de nós, dependendo do que fazemos ou não), a sociedade e as instituições. O racismo em Portugal também tem as suas vítimas concretas: essencialmente homens, mulheres e crianças das comunidades negras e ciganas.
No que respeita à situação dos negros e negras, devemos aqui afirmar que é incondicionalmente inadmissível e injustificável que um agente da Polícia execute um jovem negro de 14 anos, com uma bala na cabeça atirada de apenas alguns milímetros, sem que esse agente seja devidamente condenado. Desde o início da década de 2000, houve em Portugal pelo menos 8 ou 9 casos de negros assassinados por agentes policiais brancos, na total impunidade. Sim, não é só nos EUA que os negros são abatidos como se fossem alvos numa sala de treino de tiro, ou na caça. Isso acontece também em Portugal, embora com proporções diferentes. Mas é uma realidade bem camuflada e aceite, pois aos negro/as tudo se pode fazer: agredir, humilhar, matar, sem ser punido por isso, uma vez que não somos considerados seres humanos dignos desse nome. E que não nos acusem de vitimização, pois os fatos são mais do que conhecidos e documentados para quem tem o mínimo de bom senso.
A aceitação e normalização desse tipo de casos não pode continuar. Temos que admitir que algo está bastante errado, e não podemos continuar a viver simplesmente as nossas vidas nessas condições, sem reclamar a nossa humanidade. A vida não se resume apenas a comer, beber, dormir, trabalhar, ocupar-se da família e fazer festa. Isso é uma necessidade fundamental e importante, mas não é suficiente. Nós devemos exigir a possibilidade de viver dignamente como seres humanos, com a garantia de que a nossa segurança e integridade são respeitadas, e não sermos discriminados e assassinados pela nossa cor da pele e origem cultural, e sermos tratados abaixo de cães. Isso para não falar das profundas desigualdades que nos afetam em todos os aspetos: habitação, educação, emprego, cultura etc.
Por essa razão, é extremamente importante ocuparmos o espaço público sem receios, para reclamarmos o que é nosso por direito. Tudo o que pedimos é o respeito à nossa condição humana, justiça, igualdade e liberdade. Não há causa mais justa do que esta. Portanto, vamos pôr as nossas diferenças de lado, e vamos para as ruas manifestar no dia 15 de Setembro, e exigir uma mudança estrutural na forma como somos tratados. A mudança apenas pode advir da nossa ação. As coisas não mudam para melhor magicamente, por elas próprias e sem luta. Como nos disse o grande Frederick Douglas, “o Poder não concede nada sem reivindicação”. Está tudo nas nossas mãos. Paz e União.

 
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Publicado por em Setembro 12, 2018 em Plataforma Gueto

 

Damnés e a Ignorância-não-ignorante branca em Portugal

 

A reflexão que aqui apresento gira em torno de dois pontos relacionados com o presente debate público sobre o passado colonial de Portugal e as suas continuidades contemporâneas. Um debate que está a provocar bastante histeria e eclosão do chauvinismo e do nacionalismo pestilento, bem como a mobilização de uma estrutura de sentimentos baseadas na construção da diferença como antinomia, atrelado à ideia de pureza racial. O primeiro ponto deste texto abordará a questão da utilização da ignorância como evasão, por um lado. Servindo, por outro lado, de uma estratégia para tentar ilibar historicamente o passado colonial português, o que chamo de ignorância branca não ignorante. No segundo ponto, pretendo apresentar uma das razões da histeria do privilégio de uma certa intelligentsia branca e seus aliados.

No momento em que se discute a questão da memória, reparação histórica, (anti) racismo, descolonização, o termo que mais aparece durante o debate público é uma suposta ignorância. O conceito de ignorância tem sido usado, abusado de acordo com a conveniência de certas personalidades que não são neutras. Então perguntei a mim mesmo o que é a ignorância? E se houver uma ignorância-não-ignorante que sob a máscara da ignorância milita para perpetuar o estado «normal» da dominação racial? Depois perguntei-me o que está a provocar tanto incomodo assim neste debate supracitado?

Começo por dizer que certamente existem brancos que manifestam comportamentos racistas que são completamente ignorantes e inconscientes das suas próprias atitudes. É um tipo de ignorância que prevalece entre os brancos doxásticos[1], ou seja, a sua inconsciência é derivada da falta de informação que os leva a crer em certas mentiras oficiais. Então, a fim de evitar mal-entendidos, quero dizer que neste texto estou a debruçar-me sobre uma forma particular de ignorância: a ignorância branca não-ignorante. É uma ignorância historicamente produzida que vai sendo reproduzida e que jamais representou ou representa ausência de conhecimento em si, por isso, preserva a manutenção e perpetuação da dominação racial.

Assim, a ignorância entendida como falta de conhecimento, pode facilmente ser colmatada, em caso de boa-fé. Mas, a ignorância branca não-ignorante coabita muito bem com a existência da opressão racial em Portugal, o que significa a falta ou «desaprendizagem» de conhecimento anterior que é produzido com o objetivo de dominação e exploração». Daí que dá lugar a uma crítica racial na era contemporânea. É sabido que a ideologia de «color blind», (neo) luso-tropicalismo de Portugal desempenha um papel importante na manutenção da hegemonia branca neste país. Por isso mesmo, temos visto ao longo dos anos que, os vários relatórios internacionais, vozes de coletivos e associações e ativistas antirracistas que apontam Portugal como um país extremamente racista, são perentoriamente silenciados dentro desta lógica da ignorância branca não-ignorante. Este objetivo é alcançado através da instrumentalização de conceitos como a Color blind, a democracia racial (brasil), pós-racial (Estados Unidos) que carregam em si mesma a declaração da existência do racismo institucional. Ou seja, «somos racistas, mas temos vergonha», usando as palavras do filósofo Lewis Gordon.

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Parafraseando Charles Mill, a ignorância branca não-ignorante é uma ignorância que resiste e contra-ataca de forma agressiva, muito ativa, dinâmica, consistente, destemida e não pode, por isso, ser circunscrita apenas ao inculto ou iletrado, por que inclusive se apresenta, desavergonhadamente, como conhecimento «científico»[2]. É uma ignorância que atua a partir dos centros de pesquisas, das universidades, dos tribunais, do parlamento, dos debates televisivos e não cansa de escrever artigos de opinião nos jornais e nas redes sociais. É uma ignorância que tem como membros da sua legião, nomeadamente os professores/as doutores/as e quiçá catedráticos/as, investigadores/as e diretores/as de centros de investigação e políticos. É a ignorância que milita pela manutenção da dominação racial existente em Portugal. Procurando, acima de tudo, conservar a ideia de pureza branca, ou seja, o mito da «pureza branca».

Esta procura de manter Portugal como uma nação pura, ou seja, branca, significa manter os negros e ciganos fora do imaginário coletivo de nação. Neste sentido, a ignorância-não-ignorante branca é uma ignorância que tem conhecimento, mas que ignora os factos históricos e trabalha no sacrifício do real, porque tem uma agenda política por detrás. É uma ignorância orquestrada e de má-fé no sentido existencialista – estar consciente do que se nega através da capacidade de mentir para si mesmo. A ignorância não-ignorante branca procura conservar o estado de não-racismo institucional com racismo institucional para manter-se nos lugares de poder. Em qualquer tipo de sociedades onde se pretende preservar certas narrativas históricas, então observa-se uma demanda pela reprodução de certas narrativas históricas criteriosamente selecionadas para a cristalização de uma certa imagem de si mesma e controlo da perceção. Isto torna mais relevante quando se trata de países que cometeram atrocidades, como é o caso de Portugal. Por exemplo, a questão da guerra de libertação em África é um passado que não passou e um assunto que foi transformado em tabu, substituído por outras narrativas doces e mais apetecíveis. Por isso, Aimé Césaire tem razão quando escreveu que «não nos livraremos facilmente dessas cabeças de homens, dessas orelhas cortadas, dessas casas queimadas, dessas invasões góticas, deste sangue fumegante, dessas cidades que se evaporam pelo fio da espada[3]». Cabeças e orelhas que eram apresentadas como trofeus de guerra. Nas sociedades onde persiste um passado histórico associado à colonização, as escolas, os livros, a toponímia, os discursos oficias e as estátuas, «a estátua do general que fez a conquista» funcionam através da interiorização dos discursos de normalização do embuste colonial. E os jovens, em particular, são convidados a validar o legado real, baseado numa visão não-real, escamoteando o passado que não passou e o seu impacto na contemporaneidade. Nota-se, por exemplo, que a Turquia não aceita o genocídio arménio e não ensina. A Alemanha, outro caso, só recentemente, começou a discutir o extermínio dos hereros da Namíbia, «o genocídio esquecido» de 1904. Por isso, quem conhece a história da colonização moderna europeia fica perplexo quando observa a estátua equestre de Leopold II, em Bruxelas – o Rei da Bélgica, que exterminou cerca de dez milhões de congoleses. O mesmo se pode dizer dos dois maiores centros comerciais de Lisboa – Vasco da Gama e Cristóvão Colombo – que sabemos perfeitamente os massacres que estes dois selvagens cometeram. São marcas do colonialismo assim como Portugal dos pequeninos[4].

Em Cabo Verde, pode-se ver as inúmeras ruas, praças, estátuas até vilas com nomes de colonizadores portugueses. E até houve uma universidade privada de Cabo Verde que atribuiu honoris causa a um ex-ministro do ultramar, Adriano Moreira, responsável pela reabertura do campo da morte do Tarrafal. Neste caso, os colonos nunca foram embora e a descolonização é um processo ainda por concluir. Também podemos ver que o hediondo crime de contrabando de pessoas africanas até hoje não foi reconhecido por muitos países e empresas que estiveram envolvidas nesta violência e desumanização. E uma das formas mais sedutoras de escapar esta dívida histórica consiste no autoengano que são elaboradas através de narrativas que acabam por ser ensinadas nas escolas, universidades e difundidas nos meios de comunicação. Nestes países, os jovens estudantes, intelectuais, artistas e outros desempenham um papel fundamental na manutenção ou rutura da narrativa dominante, porque qualquer mudança radical implica a inversão dos valores, embora isto não seja suficiente. Portugal, em particular, é daqueles países que gosta de se considerar como uma exceção: o único país que praticou uma colonização benevolente e uma sociedade sem racismo. No intuito de evitar alguns mal-entendidos, alerto, desde de já, que não partilho desta visão e que, na minha perspetiva, o denominador comum de todas as colonizações é a violência como se pode observar no que estado colonialista, sionista, racista de Israel está a fazer atualmente na palestina e contra os judeus negros, imigrantes africanos etc. Portugal gosta de se mergulhar nas águas sujas do autoengano propositado mentindo para si mesmo apelando à história: minta-me para que seu sinta «especial». Comporta que nem a bruxa do conto de fadas Branca de Neve que está acostumada a escutar que é a mais bela do mundo até o dia que escutou que não era. Ficou tão destroçada que começou a odiar a branca de neve e a trabalhar para eliminar a existência da branca de neve[5]. Portugal se acostumou a dormir a ouvir estórias de embalar dos heróis do mar e agora fica chocado por escutar que não descobriram nada, mas que encobriram crimes terríveis. E certos energúmenos, embriagados de embuste lusitano entraram em histeria e gritaram «voltem para vossa terra». Entendo-te, o sono do luso-tropicalismo foi interrompido.

O debate sobre a descolonização tem produzido muita histeria dos brancos e seus lacaios que dão respostas decadentes e iracionais. Há quem até usa da estratégia da acusação de racismo inverso, essencialismo, pós-modernismo, para mandar calar algumas vozes. Durante muito tempo estas terminologias não apareciam no debate público por que eram os brancos e os seus lambe-botas no monólogo que chamaram de debate. Sobre eles, mas sem eles, na esteira de Kwame Nimako. A resposta mais decadente é «voltam para vossa terra se estão incomodados com a nossa história, com a forma como são tratados». Voltar para onde? Aqui é a nossa terra, ainda não percebeste. Isso não é um argumento é um manifesto racista, fascistas, um pensamento monolítico que confirma o racismo que supostamente pretendia negar. É coisa mais estupida que se pode fazer. Tentar parecer racional sendo irracional. O que incomoda não é o assunto, mas são os/as Damnés que se posicionam como questionadores e questionadoras por que consideram que o espaço intelectual como espaço dos brancos. «Volta para tua terra» é pedir aos Damnés que não apareçam; que não participem; que caminhem como subservientes; que fiquem quietinhos no seu lugar de não-lugar. É também um pedido de silêncio, mas sabe-se que o silêncio é também uma mensagem e, como dizia Steve Biko, não há liberdade no silêncio. É isso que incomoda: o facto de que já não se pode declarar certas barbaridades sem ter respostas. Com isto, não quero dizer que a comunidade negra, em particular, era passiva. Pelo contrário, apenas tinham outras prioridades e circunstâncias. A ideia da versão única da histórica é a causa e bandeira de guerra de todos os fundamentalistas, inclusive os eurocêntricos, dizia Ramon Grosfoguel. Por fim quero perguntar o seguinte: O que acharam que iria acontecer quando a cortina de silêncio fosse rompida e os Damnés aparecessem como juízes e juízas? O que acham que vai acontecer quando liberais e os seus lacaios perderem o emprego de guia da luta antirracista? O que acham que vai acontecer quando os especialistas em pretos perderem os seus empregos de intérpretes/mediadores entre os «selvagens» e os «civilizados»? O que acham que vai acontecer quando os Damnés se juntarem a todos os deserdados e deserdadas do capitalismo racial para dar uma face mais humana ao mundo? Não sabemos quando vai haver a explosão, mas sabemos que ela é certa!

 

By Txuputin N’Kontau

 

Referências Bibliográficas

 

Araújo, Marta – Trump no Portugal dos Pequenitos. Publicado no Jorna Público no dia 31 de Março de 2018: https://www.publico.pt/2017/03/31/sociedade/opiniao/trump-no-portugal-dos-pequenitos-1767071

Césaire, Aimé (1973) Discours sur le colonialisme. Présence Africaine. Paris

Fanon, F. (1961). The Wretched of the Earth . New York : Grove Press.

Fanon, F. (1988). Black Skin, White Mask . Pluto Press.

Gordon, L. (2005). “Through the Zone of Nonbeing: A Reading of Black Skin, White Masks in Celebration of Fanon’s Eightieth Birthday”. The C.L.R. James Journal. 11, no. 1 in https://globalstudies.trinity.duke.edu/wpcontent/themes/cgsh/materials/WO/v1d3_LGordon.pdf.

Nimako, Kwame (2012) “About Them, But Without Them: Race and Ethnic Relations Studies in Dutch Universities. Human Architecture: Journal of the Sociology of Self-Knowledge: Vol. 10: Iss. 1, Article 6.

Maldonado-Torres, N. (2016), “Outline of Ten Theses on Coloniality and Decoloniality”. http://frantzfanonfoundationfondationfrantzfanon.com/article2360.html.

Mills, C. W. (2007). “White Ignorance” . In E. b. Tuana, Race and Epistemologies of Ignorance. State University of New York Press. P. 13-38.

[1] Ver Ver Mills, C. W. (2007). White Ignorance. In E. b. Tuana, Race and Epistemologies of Ignorance. State University of New York Press, pp. 13-38.

[2] Ver Mills, C. W. (2007). White Ignorance. In E. b. Tuana, Race and Epistemologies of Ignorance. State University of New York Press, pp. 13-38.

[3] Césaire, Aimé (1973) Discours sur le colonialisme. Présence Africaine. Paris

[4] Ver Araújo, Marta – Trump no Portugal dos Pequenitos. Publicado no Jorna Público no dia 31 de Março de 2018: https://www.publico.pt/2017/03/31/sociedade/opiniao/trump-no-portugal-dos-pequenitos-1767071  

[5] Ver Gordon, Lewis (2005) – Through the Zone of Nonbeing: A Reading of Black Skin, White Masks in Celebration of Fanon’s Eightieth Birthday – The C.L.R. James Journal. 11, no. 1 in https://globalstudies.trinity.duke.edu/wpcontent/themes/cgsh/materials/WO/v1d3_LGordon.pdf

 

 
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Publicado por em Julho 17, 2018 em Plataforma Gueto

 

VIII UNIVERSIDADE DA PLATAFORMA GUETO 03/02/2018

A Plataforma Gueto tem desenvolvido um programa de formação política, baseado na ideia de educação popular, com o objectivo de formar uma base de entendimento para a emancipação de negros e negras. Por essa razão, promove desde de 2013, as universidades, para discutir ideias e realidades com o intuito de cultivar saberes importantes para a transformação da nossa condição no mundo. Um espaço livre de moderação eurocêntrica e paternalista que caracteriza outros espaços. Nesse sentido, a Plataforma convida por este meio, a Comunidade para a próxima Universidade, que terá lugar na Cova da Moura, e que vai explorar aspetos da condição negra através da apresentação da peça de teatro “MARIA 28”, do grupo Peles Negras Máscaras Negras- Teatro do Escurecimento, que expõe as condições de trabalho das empregadas domésticas negras em Portugal.

    A Universidade contará também com a presença de Houria Boultedja. Militante política descolonial franco-argelina, Houria Bouteldja é representante do PIR (Parti des Indigènes de la République). A sua obra vem-se caracterizando por manter um exercício crítico contra a islamofobia, o racismo e o neocolonialismo. A sua formação inclui estudos em línguas estrangeiras aplicadas ao inglês e ao árabe em Lyon. Participou da fundação dos coletivos Les Blédardes (Los inmigrantes de la Colonia) e “Una Escola Para Todos e Todas”. Em Janeiro de 2005 participou no início da Chamada dos indígenas da República, que deu origem ao movimento radicado em França, do qual é porta-voz: Les Indigènes de la République, que luta contra a discriminação contra os descendentes da histórica colonial e contra a ideologia racista e colonialista. Em 2014 recebeu o prêmio de Combate contra a Islamofobia da Islamic Human Rights Commission. Participou como coautora nos livros La Révolution en 2010: les vrais enjeux de 2007 e Nous sommes les indigènes de la République.

Houria vem apresentar o seu livro “Los blancos,los judíos y nosotros. Hacia una política del amor revolucionário (editorial Akal 2017), originalmente publicado em 2015 (Les Blancs, les Juifs et nous: Vers une politique de l’amour révolutionnaire, La Fabrique 2015). O presente livro pode ler-se como um manifesto descolonial para o século XXI ou mais precisamente como um convite ao amor revolucionário, que não pertence ao romantismo, senão a justiça. É uma chamada a descolonizar o mundo, a reconhecer que o privilégio de alguns poucos se constrói sobre a opressão de muitos.

 

 
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Publicado por em Janeiro 30, 2018 em Plataforma Gueto

 

A falácia do “racismo inverso” – JOACINE KATAR MOREIRA

Acreditar no racismo dos oprimidos para com os opressores exigiria que entrássemos numa máquina do tempo que revertesse a História.

A atenção. “Attenção: Vende-se para o mato uma preta da costa de idade de quarenta e tantos annos, muito sadia e bastante robusta, sabe bem lavar e cozinhar o diário de uma casa, vende-se em conta por haver precisão, no beco Largo, n. 2. Na mesma casa vende-se uma tartaruga verdadeira.”

O protesto. “Protesta-se com todo o rigor das leis contra quem tiver dado, e der coito a escrava do abaixo assignado, fugida de seo poder na freguezia do Queimado desde 7 de fevereiro do corrente anno; e gratifica-se, conforme a trabalho da captura, á quem a prender, e levar ao dito seo senhor ali, ou mete-la nas cadêas da capital. […] Levou uma filha de sua côr, que terá pico mais de anno de idade. O padre Duarte.”

A fuga. “Escravo fugido. Acha-se fugido desde o dia 3 de março passado, o escravo de nome Joaquim, de nação Congo, edade 61 annos, mais ou menos, côr preta, cabelos brancos, tanto os da barba como os da cabeça, olhos grandes, bons dentes, bastante baixo, tendo o dedo grande da mão direita mutilado.”

Estes excertos, expostos no Memorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro, em Cacheu — importante entreposto comercial de escravizados na Guiné-Bissau —, ilustram a forma como as relações raciais, fruto do colonialismo e da Escravatura, passaram da “diferença negativa à coisificação do Africano” (Isabel C. Henriques), comparado, tratado e marcado como animal doméstico, de carga e de serviço, retirando-lhe toda e qualquer dignidade e submetendo-o às mais brutais violências e, com o tráfico negreiro, sujeito a uma desumanização de difícil equiparação na História mundial. A vida média de uma pessoa uma vez escravizada era, aliás, de dez anos, como observou António Carreira em Notas sobre o Tráfico Português de Escravos, de 1978.

O comércio transatlântico de pessoas escravizadas foi legal e sujeito a impostos como qualquer outra transação. A Igreja Católica suportou religiosa e moralmente a Escravatura, que tinha propósitos essencialmente comerciais e políticos. Mais tarde, a Revolução Industrial, cujo motor foi o algodão (Sven Beckert) — algodão este cultivado por gente escravizada nas Américas, como recordou Noam Chomsky —, originaria o fim legal do tráfico, mas não o da Escravatura, que servia a industrialização e o desenvolvimento a Ocidente por mais algum tempo. Marcus Rediker destaca a centralidade da Escravatura e do trabalho forçado no surgimento do capitalismo, considerando que “os navios negreiros foram o vector da produção das categorias de ‘raças’”. E é deste contexto que surge o que denominamos de racismo, uma opressão histórica, violência sistémica, uma relação de poder e de profunda desigualdade. E é por isso que o racismo está intrinsecamente, e historicamente, ligado à inferiorização dos negros (e não dos brancos).

Neste quadro, acreditar na existência de “racismo inverso”, ou seja, no racismo dos oprimidos para com os opressores, exigiria, como ironizou o comediante Aamer Rahman, que entrássemos numa máquina do tempo que revertesse a História e alterássemos as posições de poder. Mas não há forma de reverter a História, mesmo com tentativas várias de naturalizá-la, de negá-la ou de manipulá-la. Torna-se pois importante ter atenção ao tempo em que vivemos, onde se continua a insistir em paradigmas do passado, recusando-se mudanças estruturais.

Avalizar o “racismo inverso” é tentar boicotar o movimento anti-racista, silenciar as vozes negras e subalternizadas que legitimamente se levantam, tentando também reduzir o racismo a uma questão de “natureza humana”, portanto natural. Em tal equação toda a gente pode ser racista com toda a gente, esquecendo que nesse “toda a gente” há gente que oprime e gente que é oprimida; há gente que detém o poder e gente que luta pela visibilidade dentro das sociedades em que se encontra; e há gente que usufrui ainda hoje do privilégio da herança escravocrata e gente que, pelo contrário, carrega esse fardo, que se traduz na segregação racial, na pobreza e na exclusão social.

A atenção. As associações de afrodescendentes caracterizam o “racismo inverso” como “uma tentativa de legitimação do contínuo controlo exercido sobre povos que sofreram séculos de opressão, por medo de uma hipotética retaliação” (AFROLIS); “uma construção daqueles que pretendem fugir à discussão do verdadeiro problema: o racismo estrutural” (DJASS); “um modo de mascarar o racismo perverso e silencioso em que vivemos” (FEMAFRO); “uma reação por parte de quem deseja preservar uma estrutura racista que lhe confere certos privilégios” (PLATAFORMA GUETO). Sintetizando: “o racismo inverso não existe”, sendo que o que existe é ”uma resposta de ‘auto defesa’ de quem sofre a discriminação racial” (SOS RACISMO).

O protesto. O racismo implica uma expressão colectiva marcada pela história, pelo poder e pelo epistemicídio africano, o que faz com que mesmo quando é protagonizado por um só indivíduo, este fá-lo com base num contexto que sustenta e demarca historicamente o seu comportamento. Um negro pode discriminar e ser preconceituoso com um branco, mas não pode ser racista com ele, porque este último não tem estruturas (históricas, politicas, económicas e sociais) que o oprimam com base no seu fenótipo.

A fuga. Aos que acreditam na falácia do “racismo inverso” ou na subtileza do racismo em Portugal, repito o exercício que Jane Elliot fez com a plateia de uma conferência nos EUA: quem gostaria de ser tratado como os negros são tratados neste país, que se levante!

A autora escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

 

 
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Publicado por em Julho 17, 2017 em Plataforma Gueto

 

Excecionalidade Jurídica do Gueto e Legitimidade do Uso da Força

Debruçar-me sobre um assunto onde há vítimas acaba por colocar-me numa situação de desconforto e desconfiança moral, porque estarei ou não a aproveitar-me da dor do outro para pronunciar-me sobre uma ocorrência. Confesso que em relação a esse tipo de situação, descrevi num poema como uma espécie de canibalismo mediático comportamento típico das sociedades baseadas em redes sociais e onde todos manifestamos consternação sobre algo com quem não possuímos nenhum tipo de intimidade. Procurando obter um conjunto de likes ou de comentários sobre uma situação que é de todo alheio a nós mesmos. Por isso, afastar-me-ei do lugar de vítimas ou agressor, antes prefiro atender ao fenómeno da violência policial na realidade portuguesa tout cour.

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A este texto decidi intitular a excecionalidade jurídica do gueto e legitimidade do uso da força. Para muitos, a violência policial nos bairros periféricos constitui uma novidade, mas eu afirmo que a violência policial nos guetos de Lisboa e não só é uma realidade presente diariamente, tornando-se efectivamente uma necessidade do próprio Estado português para afirmar o seu poder dentro da sua jurisdição territorial. Nesta precisa senda, institucionalizou uma zona de exclusão social e política que em termos de medidas de segurança e administração do território são descritas geograficamente como Zonas Urbanas Sensíveis, a bem dizer, zonas de perigo iminente. Com isto, a política de colocação de quadros das autoridades policiais obedece este princípio. Assim, os polícias mais dotados física e mentalmente para recorrer aos meios de violência são colocados nas esquadras que estão encarregues dos guetos.

De forma a fazer jus da necessidade de imposição da autoridade do Estado, adotou-se uma linguagem de criminalizar uma comunidade antes de qualquer sujeito cometer um crime sequer. Entramos, assim, numa lógica de criminoso potencial e de culpado por ter uma determinada característica étnica, resvalado para o campo biopolítica, visto que há sujeitos que possuem ADN de criminoso. No entanto, esta necessidade de poder político vigente apenas resulta, pois, este constitui um inimigo político que serve para alimentar a sua ação política coletiva em prol da proteção em favor dos nacionais, conforme perspetivou Carl Schmidt. Este inimigo é quase sempre uma minoria política que não dispõe dos meios suficientes para garantir a sua devida proteção jurídica e política contra o poder do Estado e da propaganda jornalística sensacionalista.

Estes dispositivos descritos acima entram em concordância com a visão de poder desenvolvida por Michel Foucault, onde o autor salienta que o saber e o conhecimento são duas formas do poder moderno e não propriamente a violência física. A desconstrução do conceito de poder típico da sociologia e ciência política permite-nos entender a razão da violência contra a população do gueto. O desenvolvimento de novas técnicas de policiais, segurança e treinamento só podem ser testadas em zonas de excecionalidade jurídica e onde os seus habitantes já estão condenados social e politicamente de forma aceitaram ser alvos da violência estrutural do Estado, caso contrário, torna-se difícil aplicar novas técnicas. Por exemplo, as autoridades portuguesas adquiram carros blindados para o policiamento da passagem de Barack Obama por Lisboa, então Presidente dos EUA, mas não tinham como dar uso a esse instrumento, pelo que aproveitaram e entraram num gueto com tais carros, procurando testar a efetiva validade dos carros blindados. Tal atitude poderá ser adotada numa zona de pleno direito dos seus habitantes sem gerar contestação social e política? Estou certo que não.

Assim, não devemos mitificar o assunto da violência policial no gueto como tal, porque as autoridades portuguesas dão a devida cobertura aos polícias para atuarem dessa maneira. Isto nem sequer deveria constituir uma novidade para os portugueses, pois bastariam ter uma noção do papel histórico de Portugal no desenvolvimento de novos mecanismos de violência contra aos negros para terem uma maior consciencialização desse fenómeno. Desde as sanzalas, os musseques, os campos de trabalho forçado, as prisões políticas e, atualmente, os guetos. Estas foram zonas pautadas pela excecionalidade jurídica, onde o uso da violência era consentida como uma necessidade de assegurar o sentimento de segurança dos portugueses, desrespeitando o direito mais básico do ser humano, subalternizando o negro ou pobre a uma condição de não-ser. Para este efeito, a população que vivia nessas zonas estava automaticamente condenada. Assim, não estou surpreso com essa postura das autoridades portuguesas, considerando que são práticas que estão presentes ainda hoje no Estado Português do pós-colonial. Fico-me por aqui hoje na abordagem sobre essa matéria, mas voltarei a debruçar-me sobre assunto, de forma a desmistificar a ideia de que o Estado português não se mantém colonial, porque um Estado transporta dentro de si um ADN de violência estrutural.

 
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Publicado por em Julho 17, 2017 em Plataforma Gueto